Já não quero saber de reflexos, nem de espelhos. Ali onde tudo parece igual ou único busco mais a inspiração.


Voltando...Com as "quizilias" da vida

 

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 Já tinha pensado em encerrar essa seção, mas o mundo lá fora borbulha, convida, exige, e se nos mostra de formas tão diferentes e convidativas. Como escapar dos seus chamados? Não tenho tempo, como muita gente da classe trabalhadora, mas o ócio criativo é uma necessidade e uma demanda do mundo. E antes que um anjo torto daqueles do Carlos Drummond de Andrade murmure no meu ouvido, vai Verônica, ser cronista na vida...eu já fui. E me pego com a pena eletrônica dos tempos modernos fazendo mais um croniconto ou uma croniblogg. Lá vai mais uma.

Quizílias da Vida

Pois, em dia de feira, com as cangalhas de meia idade irritando, sem adaptação, fui passando pelas prateleiras do supermercado. Ossos do ofício do consumidor moderno, em corredor estreito...com os olhos irritando. Lastimando entre dentes alcanço a prateleira de gelatinas e fui buscando...Topo com a gelatina de abacaxi...abacaxi, huuummm...O abacaxi me lembrou coisas, como os abacaxis da vida. Imagens passam, minha mãe cantando para eu dormir "você bem sabe que eu não lhe prometi um mar de rosas..." Que imagem estranha! Minha mãe não conhecia música dos FEVERS, cantava Praieira, músicas de Herivelto Martins, Casinha Branca... Só pode ser culpa do abacaxi, que me suscitou tais imagens. Ponho a gelatina de abacaxi no carrinho assim mesmo.

E enquanto continuo pensando cruamente nessa realidade de abacaxis, alcanço a gelatina de maracujá. Huummm...aí um pouco de refrigério, a sensação refrescante de maracujá, o perfume do maracujá e o sabor inigualável do maracujá, até mesmo na gelatina que se poderia pensar que é artificial. (Não estou ganhando nada por falar de gelatina de maracujá, mas posso aceitar patrocínios rss...rss). Que seria de nós sem maracujá?Bom, de abacaxis e maracujás a vida é feita. Tal e pronto, nem tudo nem tão pouco.

O carrinho foi se enchendo e pára no açougue. Enquanto meu companheiro discute  com o açougueiro sobre as últimas da carne do dia, vejo um grande cartaz onde anuncia tudo do frango, suas partes, com desenho e a lista completa. Começo a ler e começo a ficar perplexa com a especialização do frango. A asa tem 4 cortes diferentes: a asa completa, a ponta da asa, o meio da asa e a coxa da asa.

 O açougueiro estava interessado na alcatra, fez uma bandeja de bifes finos, interessantes e caaaros p'ra xuxu. Comentava que aquele corte de carne podia mudar completamente a percepção do preço. Dizia: "depois que você comer esses bifes, você volta correndo pra comprar de novo e você não vai nem querer saber o preço. Esse corte vicia a pessoa.

Eu, preocupada com o frango, tecia considerações antropológicas, econômicas e históricas. Pois quem poderia prever no que o frango se transformara. Antes a gente comia a galinha com pedaços tradicionais, conhecidos e disputados na mesa do domingo. Quando alguém dizia, "eu quero a asa da galinha", era a asa. Ninguém ia perguntar: você quer a ponta da asa, o meio da asa ou a coxa da asa? É claro, que um frango assim tão fragmentado como o mundo moderno cumpria uma função: arrecadar mais lucros, aproveitando o máximo de cada parte sua. Fui descendo na lista das partes do frango e cheguei em uma parte estranha e desconhecida chamada "quizília".

Dirigi-me ao açougueiro e disse: moço, perdoe a minha ignorância, mas que parte do frango é a "quizília"? Outra consumidora se interessou e ficou esperando também a explicação. O açougueiro se postou como se fosse recitar algo decorado e disse solenemente: é a parte de trás do frango de onde saem as penas. Sem conseguirmos entender que parte era, a outra mulher falou: mostre no desenho qual é a parte. Ele mostrou nada mais e nada menos do que o sobrecu.

Tomamos um susto em dupla dizendo: é o sobrecu! Perguntei por que tinham mudado o nome do sobrecu por quizília. Sobrecu era um nome conhecido, popular e era um nome bonito. Ele mais uma vez se empertigou para explicar que "quizília" era um nome mais elegante, que era melhor p'ra todo mundo falar. Nenhuma vez enquanto falava usou a palavra sobrecu, provavelmente porque a palavra estava proibida ali.

A mulher do lado tinha um rosto que expressava decepção e fúria, enquanto o açougueiro dava as explicações. Ao lado, eu a imaginava em almoços de domingo quando vários disputavam o sobrecu à mesa familiar. Na mesa da família a lembrança afetiva da galinha integral, sem hipocrisias, com naturalidade e respeitando a integralidade do prato. Galinha na mesa tinha que ser inteira, ou com todos os pedaços. O sobrecu estava completamente integrado nas tradições familiares, populares, culturais. Ia desde as sensações mais infantis, aos preparos culinários, expressões culturais e aos afetos.

O sobrecu lembrava a galinha inteira, a que todos poderiam ter direitos de variar no que comiam. Em uma dada estação poderiam comer mais as asas ou as vísceras, em outra costelas e pescoço, em outras peito e coxinhas e em outras ainda o coração, o pé e o sobrecu. Não havia, portanto, preconceitos. Todos os  gostos eram cumpridos ao longo dos domingos de um ano inteiro.

Olhava de soslaio para a mulher, que agora tinha o rosto cada vez mais enfurecido, com a resposta do açougueiro. Não falei nada, mas pensei bem alto: entendo perfeitamente como você se sente. Mas, ela com um ar de fúria já dava uma "rebanada" à moda cearense e saía com seu carrinho de compras.

Eu, já sob controle, depois de tamanha surpresa, perguntei ao açougueiro de onde tinham tirado aquela palavra para substituir o sobrecu. Ele novamente empertigado respondeu: Essa palavra vem do latim! Minha imaginação já estava, entretanto, nas "quizílias" da vida. Em quantas palavras mais bonitas, oriundas do latim, em quantas "quizílias" nos escondemos para não aceitar a realidade como ela é. Ainda mais quando sabemos que o sobrecu da galinha, ainda que não seja admitido por todos, é uma "quizília" que muita gente gosta.

Post Scriptum Depois de Pesquisa =PSDP

Com a curiosidade que eu estava ao chegar em casa corri para o dicionário Aurélio. Com todo o respeito a realidade popular a palavra sobrecu estava lá e tinha como sinônimos as palavras: uropígio e mitra. Esta última  dividindo o significado com o barrete que usam bispos e cardeais. Portanto, ao lado daquilo que a sociedade neo-latina considera nobre.

Mas não bastando e querendo saber outros significados  fiz uma busca na internet. E entre outras  surpresas descobri que uropígio era uma palavra citada em antigos livros de magos. Um internauta dizia-se frustrado por usar essa palavra uropígio como um grande elemento de magia, um nome forte, pomposo, que parecia encerrar segredos mágicos, até descobrir que era nada mais e nada menos do que o sobrecu de galinha.

A maior surpresa, entretanto, foi o significado da palavra quizília, que não vem do latim como dizia o açougueiro, mas é um legado africano. A palavra significa: aborrecimento,repugnância, rebuço, apuração, aversão, desinteligência, inimizade, rixa, zanga e fingimento. Todos eles significados muito pouco elegantes. E o significado que achei, de fato, mais apropriado à  "quizília" do açougue foi fingimento.

Querendo dar um nome elegante ao sobrecu acabaram desprezando o quitute culinário, pois nas religiões afro quando fazem oferenda a um orixá, aquilo que ele não come, ou que não é sua comida apropriada é chamado de quizília. A quizília é, portanto, uma comida repugnante ou que os deuses têm aversão, rejeitam.

Mesmo assim, um depoimento na internet me chamou a atenção e me fez entender porque apesar de ser tão desprezado, e depois de tantas "quizilias", o sobrecu de galinha é querido e apreciado como quitute por muitas pessoas: além de saboroso ele tem a forma de um coração. Quem não acredita nisso eu digo: verifique.

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Postado depois=PD

Passados alguns dias...Por acaso voltei ao supermercado. Por curiosidade passei no açougue  e procurei o cartaz do frango. Postado a uma certa distância do balcão o cartaz trazia uma surpresa: no lugar de quizília tinham colocado o nome sambiquira.Talvez a fúria da consumidora da outra vez, ou os meus questionamentos, ou quem sabe o zunzum da aldeia global ocasionaram a mudança.  Pensei com meus botões, sem mais coragem de discutir o assunto com o açougueiro: que é que é isso?

Voltando a casa providenciei nova pesquisa, pois não conhecia tal palavra. Mas, descobri que é um regionalismo do sul, do dialeto caipira, sinônimo de sobre ou de uropígio, como aparece no dicionário. Mas, encontrei outra novidade: a palavra é de origem indígena. Pensei: ih! o assunto está se aprofundando. Indígena ou não o certo é que cearense não conhece. É palavra usada no sul.

Fiquei pensando como um consumidor cearense que gosta de molecagem compraria a tal peça do frango: ô rapaz, me traz aí esse sobrecu de galinha que tem nome indígena!

Sem mais...

 

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