Já não quero saber de reflexos, nem de espelhos. Ali onde tudo parece igual ou único busco mais a inspiração.


 AOS CAMINHANTES

 

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 Um dia, conversando com uma pessoa sobre arte e as perspectivas da arte, ela me falou brincando, se referindo talvez ao fato desse assunto ser para mim palpitante: "sua vida é uma obra de arte.”   E eu repliquei quase de uma forma reflexa : a vida de toda pessoa é uma obra de arte, mas nem todos têm consciência disso.

De certa forma, minha inserção no mundo da arte, já adulta e na meia-idade me fez refletir sobre essa questão. Mas o mais fundo que me vinha sobre o tema era uma observação há muito tempo feita por uma das madres superioras do colégio de minha infância e adolescência, hoje já falecida - Irmã Brasileiro. Freqüentadora assídua de  nossa casa, em frente ao colégio, conversava muito com meus pais de quem era amiga. E ela me disse uma vez que nunca tinha esquecido algo que meu pai lhe falara sobre a vida: que a vida de cada pessoa era como um quadro que ia sendo pintado lentamente, com pinceladas. Cada passagem, cada realização era como uma nova pincelada na própria vida.

Sabedoria que toda pessoa pode adquirir em sua trajetória de vida, à medida que a constrói e passa a refletir sobre ela. De fato, quando nascemos somos uma obra de arte da criação, única e original - apesar das ameaças dos clones e transgênicos. rss...rss...- com todas as possibilidades para ser capaz de viver e ser feliz. Colocamos nossos pezinhos de criança para andar  e correr apreendendo as possibilidades desses membros e já estamos caminhando. Tornamo-nos essa obra de arte caminhante, que tem que ir se fazendo e adquirindo consciência ao longo do caminho. Somos, portanto, caminhantes desde cedo. Há uma vida inteira, seja qual for o tamanho, para ser vivida, desvendada e conhecida. Somos "turistas do planeta azulzinho" como cantam os Tribalistas, e ao mesmo tempo partes dele.

Nascendo assim, tão belos, tão originais, como uma obra da criação, somos todos iguais enquanto espécie e criatura no planeta e universo. Mas, logo, na cultura em que palmilhamos e aprendemos a dar os primeiros passos as diferenças começarão a se estabelecer. E podemos perceber que somos  também seres históricos, datados, atualmente modernos, pós-modernos e cada vez mais fragmentados, com dificuldades de se reconhecer como parte dessa totalidade, e de desenvolver suas potencialidades, na maioria das vezes  vitais e necessárias para o próprio amadurecimento.

Sobre essas características da sociedade moderna e pós, e a fragmentação do ser humano há uma vasta literatura que busca compreendê-las a partir de muitos ângulos. Em quase todas as análises se reconhece, entretanto, um novo movimento, que estabelece uma nova forma de caminhar - considerando as inúmeras mediações de cosmovisões e civilizações diferentes, da economia, das diferenças regionais, do estabelecimento de classes sociais em um dado sistema, enfim, a forma de inserção dos indivíduos nas  sociedades e culturas.

Principalmente nas sociedades ocidentais, se dá a ocorrência da enantiodromia¹, como necessidade dos indivíduos dessas sociedades buscarem sua integralidade e inteireza em uma cultura e sociedade que sufoca aquilo que é vital. O mundo da vida passou a ser um foco importante da cultura, e a vida das pessoas, como parte da vivência dessa enantiodromia, entendida como crise, passou a ser "um reboliço".  Essa crise passou a ser vivenciada tanto em nível individual, quanto no nível da cultura.

Caminhar na crise adquiriu, portanto, outros significados e outras formas de fazê-lo. Como não existem fórmulas e receitas prontas, e as que existem em geral não servem, caminhar é vivenciar a própria crise e a crise da cultura tentando compreendê-la e dela retirar seu próprio sustento vital e o "novo" que dela virá para continuar sua caminhada, e  para a caminhada de coletividades. Muitos caminham nessa perspectiva e o fazem também de formas diferentes.

É necessário dizer que caminhar na crise individual e da cultura é questionar permanentemente essa fragmentação, os valores vigentes da cultura  e lutar pela recuperação de partes da alma individual e coletiva que compõem essa vitalidade perdida. E esse questionamento não ocorre simplesmente pela exposição de pensamento, ou expressão poética e artística, mas principalmente  pela vivência.

Caminhar na crise significa viver a alma  e sua multiplicidade e ir fundo para conhecer aquilo que você é com tudo "aquilo que te suja e te transfigura" como diz o poeta Thiago de Melo. Em outras palavras se autoconhecer. E enquanto o faz vai conhecendo também outros e o entorno. Tudo isso para descobrir permanentemente enquanto se caminha o que a cultura narcísica insiste em negar permanentemente: somos todos irmãos, somos todos iguais enquanto espécie, mas individualmente diferentes e importantes. Somos uma criação maravilhosa feita para ser descoberta enquanto vivemos a vida que nos foi concedida.

Mas na trajetória como humanos carregamos em nós o melhor e o pior. E a realidade, quando a vemos de forma clara e transparente, nos mostra exatamente isso. A capacidade de criar uma ética e o ponto de equilíbrio nessa maravilhosa e terrível realidade é o que nos distingue como seres humanos que estamos na crise geral da cultura ampliando a consciência. Descobrimos que não somos melhores e nem piores do que ninguém, mas seres humanos em processo, em crescimento.

Tudo o que eu não possuo para desenvolver plenamente minhas potencialidades posso aprender e adquirir com outros. Mas tenho algo de valioso e importante que a mim compete dar e contribuir. E aí reside minha importância fundamental e ontológica de ser exatamente o que eu sou. O que somos verdadeiramente nos satisfaz e também aos demais quando isso é feito com autenticidade.  Mas descobrir o que se é realmente traz outras dificuldades e um preço.

A cultura ocidental moderna já escolheu, até mesmo antes de nascermos, onde  temos que nos enquadrar. Sobre isso são  constituídas as máscaras culturais, além da trajetória individual e específica de cada um, que desde cedo começam a minar as bases dessa realização. A cultura moderna é narcísica  e por isso não nos valoriza e nem nos espelha pelo valor individual de cada um, mas pela classe social, etnia, status, situação econômica, civilização. A cultura narcísica não tem amor. Está eivada de símbolos de poder, um poder sem amor.

Ao contrário do que muitas pessoas possam pensar o narcisista não é aquele que se ama demais, mas justamente o contrário, aquele ou aquela pessoa que por não se amar ou não ter auto-estima fundamental na vida convive com o vazio permanente de afeto, espelhamento e reconhecimento. Daí a inflação do ego. A cultura narcísica não ama e não valoriza o indivíduo por aquilo que ele é, em sua vocação e em suas potencialidades como ser humano, e por isso  na cultura moderna ele não poderá se desenvolver plenamente. E o fará somente como um fragmento, que se desenvolverá mais ou menos de acordo com suas possibilidades e escolhas.

Não por acaso a cultura narcísica e fragmentada está cheia de ressentimentos, de ódios, de invejas. No fundo é o ressentimento de não poder ser. Ao caminhar, todos se encontram com as máscaras da cultura que carregam interiormente e as que se manifestam exteriormente e agora são mais reconhecidas. Infelizmente, o ressentimento gerado nesse tipo de cultura e que afeta trajetórias individuais,  ao não ser reconhecido  e nem compreendido fará os indivíduos por ele tomado caminhar à busca de poder pelo poder.

Pessoas culturalmente ressentidas, que optam pelo caminho mais fácil, de preço menor, se aliarão  às formas de poder clássicas e específicas da cultura em que vivem. Não estou falando de pessoas economicamente pobres. Em todas as classes sociais existem as formas específicas de se vivenciar a cultura narcísica. Essas pessoas passarão a se inflacionar, a se diminuir para se aumentar, ou querer realizar atividades profissionais para as quais não são aptas e não têm vocação, buscando as costas largas  da cultura e seus detentores que lhe agradecerão pelo comodismo. E para viver dessa forma terão que ser pessoas que de fato não são. Um escritor  de vocação nesses casos, pode tentar ser um técnico de uma instituição pública que não terá como usar toda a sua imaginação e energia, um desportista ou bom técnico que não sabe escrever direito e nem tem vocação para isso, vai querer ser escritor.

Conheço um caso de médico obstetra, que no dia de seu primeiro parto na casa de uma paciente, pulou pela janela do quarto e deixou a paciente sozinha na hora do nascimento da criança. Por medo e falta de vocação para a profissão. Mas a profissão de médico era, na época do ocorrido, uma profissão que dava status e poder econômico.

Alguém pode argüir que alguém pode exercer mais de uma profissão e atividade. Eu respondo que pode e até deve, se isso for importante para sua realização pessoal e profissional. Mas, aqui vem outro problema da cultura: a especialização, o tempo de trabalho e todos os recortes que lhe fazem e lhe suprimem desde cedo lhe preparando para o mercado de trabalho.

Como diz Jung nos seus estudos sobre a cultura, alguém que resolva ser múltiplo nessa cultura é motivo de desconfiança. Porque acharão que não faz nada com  a seriedade e especialidade que lhe é exigida.

Daí que quem resolve caminhar de forma diferente, pagará o preço de se ver atravessado no caminho, com os defensores e porta-vozes de uma cultura que não quer mudar e que deturpa e distorce o sentido de tudo o que se faz.

Quem aprende a caminhar diferente, aprende também que na estrada aparecerão muitas "pedras de tropeço", suas, próprias, e de outros, com quem querendo ou não você terá que interagir. Para lidar com tudo isso a consciência se amplia, não sem muitos embates, e o caminhante descobre que ele ou ela é muito mais do que a proposta que a cultura teve e tem para ele.

 Marie Louise Von Franz em seu estudo sobre a função inferior da personalidade, baseado na psicologia do inconsciente de Jung, conta uma passagem de sua convivência com Jung em que ela descobre que ele freqüenta uma espécie de clube, onde as várias pessoas que viviam os seus processos de individuação e de busca da inteireza de suas personalidades podiam vivenciar sem máscaras os seus animais interiores. Ela mesma, depois convidada a fazer parte do clube, teve a oportunidade de vivenciar esse lado considerado estranho na "sociedade suíça civilizada" de então.

Hoje há toda uma literatura sobre o processo de identificação humana com os outros reinos e espécies da natureza no processo e busca de inteireza da personalidade, principalmente se ele é visto e enfocado através da ecologia profunda e do que podemos aprender através de outras cosmovisões, dos povos originários de nosso continente americano. O ser humano está se tornando mesmo muito complexo.

O reconhecimento dos animais interiores como força vital e parte da cadeia da vida é parte de várias linhas de pensamento. Falo disso para lembrar que muitas vezes diante de "pedras de tropeço" e dos obstáculos das estradas muitos caminhantes podem e até devem vociferar. Vi isso uma vez, com um líder espiritual reconhecido, em entrevista na tv, anunciando um encontro.

Calmo e pacífico, cheio de boa vontade dava uma entrevista sobre o encontro. O repórter que o entrevistava além de imaturo como profissional passou a provocá-lo permanentemente com perguntas impertinentes, tentando deturpar o sentido da entrevista e encontro. Pacientemente ele respondia, até que em um determinado momento percebi, pela tv, que seu corpo mudava, sua expressão do rosto se alterou e ele "vociferou" quase literalmente. Sua simples mudança física e de voz respondendo a um impulso maior, e também animal, fez o repórter recuar. Vi como ele recuava fisicamente e tratou de guardar sua "viola de deturpação no saco".

Uma vez me acusaram sub-repticiamente de que eu carregava um cachorro pitbull e que era perigoso. Não preciso dizer que essa história já me fez rir demais. Como todo caminhante, aqui  e ali eu preciso "vociferar", mas pitbull não é  a minha, sinceramente. Ciente de que todos carregamos uma força animal, seja caminhante "das antigas" ou caminhante "das modernas" digo logo: não me afino com raposas (rss..rss..). São muito sonsas e mascaradas, mesmo no reino animal. Atacam os galinheiros à noite, comem todas as galinhas e saem de mansinho. Depois estão todas bonitonas por aí, com seu sorrisinho falso, sua cauda grande  e vistosa como se não tivessem feito nada. Tanto as raposas machos, como as raposas fêmeas. É por isso que eu acho que alguns animais como a raposa deveriam  fazer parte dessa cultura narcísica moderna e mascarada e não do reino animal. Nem tudo é perfeito...

Para essa cultura narcísica e essas raposas pouco dignas de sua espécie os caminhantes só têm uma solução: amar e ...vociferar.

Em meio a tanta complexidade as soluções podem e devem ser simples. É difícil ser perfeito, mas precisamos de simplicidade para suportar a complexidade desse ser humano que está saindo da forma. Acho que tem gente que fala melhor do que eu dessa simplicidade tão requerida na estrada - os estradeiros e grandes compositores Almir Sater e Renato Teixeira. Ouça-os,  através de meu canto a Capella.


N. ¹ - Enantiodromia é o movimento em que a pessoa ou a cultura passa a vivenciar o oposto do que é, como uma forma de compensação energética. Aquilo que não foi vivenciado pelo fato da pessoa ou cultura desenvolver-se como  um fragmento, necessitando de partes que lhe são vitais. Na maioria das vezes instala-se de forma caótica.

 

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§ A Parte de Cada Um -15.11.2007
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§Letras Bailarinas-13.08.2007
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Verônica Maria Mapurunga de Miranda

 

 

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