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Foto da Beira-Mar -Fortaleza -Ce,  por Verônica Maria  Mapurunga de Miranda -Junho de 2007


 

COMEMORANDO A CIDADE. PRA QUE? POR QUE? E OUTRAS OCORRÊNCIAS...

 

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Esta crônica está mesmo atrasada. Pois ainda se refere ao aniversário da cidade de Fortaleza. Nenhum problema, se considerarmos que o tempo é uma criança, e que os cronistas também têm seus problemas, percalços. Mais justificados os problemas estarão ainda, se esses problemas forem relacionados à dita comemoração.

Digo-lhes com a sinceridade de minh'alma, que até ver no jornal muitos artigos sobre a cidade e seu aniversário, não tinha me tocado da data, apesar de ter estado escrevendo sobre ela. Na véspera, ainda sem saber do evento, com as fortes chuvas que caíam, me veio o desejo de comer maxixada com carneiro. Outra ocorrência insólita. Nunca fui fã ardorosa de maxixada, mas naquele dia me parecia fundamental.

 Fui ao supermercado, certa de que no dia anterior tinha visto muitas bandejas de maxixe. No entanto, lá chegando, todas as bandejas tinham sido substituídas por jiló. Veio-me imediatamente  uma frase de Luís Gonzaga: "amargo que nem jiló". Fiz uma careta e desisti do jiló, mas não da reclamação por ter bloqueado meu desejo tão intenso de comer maxixe.

 Aproximei-me de um dos funcionários do supermercado que arrumava as frutas nas gôndolas e perguntei-lhe o que havia acontecido com todos aqueles maxixes que tinha visto na véspera. Foram vendidos, provavelmente para algum restaurante ou famílias grandes. Pensei: está todo mundo na maxixada. E falei pra ele do meu desejo de comer maxixe, acompanhado de carneiro, com aquela chuva...Ele balançava a cabeça afirmativamente, entendendo a minha situação, mas infelizmente não podia fazer nada. Falava com um certo ar compungido e eu percebi então que ele estava plenamente sintonizado com aquele meu desejo, imaginando aquela refeição, que provavelmente ele também adoraria.

Foi aí que eu percebi que não estava sozinha nesse desejo de comer maxixada com carneiro. Caro leitor ou leitora, lhe advirto que grande parte do que desejamos ou pensamos não é tão individual assim, nem tão próprio. Somos muito coletivos quando prestamos atenção aos desejos corriqueiros do dia-a-dia. Bom, sem maxixe, já ia para casa com um consolo: não seria a única a não comer maxixe, pois provavelmente muita gente estava desejando isso e no supermercado não havia mais.

Já tinha saído do supermercado, descido a escada para a rua quando escuto alguém chamando e viro-me de forma reflexa. Vejo no alto da escada o funcionário do supermercado com duas bandejas de maxixe me acenando. Vocês não acreditam, mas no Ceará tem disso sim. Tem dessas gentilezas. Tem também patadas, mas é sempre bom reconhecer a boa recepção. O rapaz tinha ido olhar no depósito e encontrado duas bandejas remanescentes de maxixe pra mim, e saiu correndo ao meu encontro, para que meu desejo fosse realizado. Não preciso dizer que fiquei muito agradecida e fui comprar os outros temperos para o tal banquete dos deuses cearense.

No dia seguinte enquanto comia bem acompanhada pensava naquela coincidência, pois agora já sabia que era o aniversário da cidade e estava comemorando sem saber. Perguntei-me enquanto comia aquela refeição tão cearense, por que não desejei comer peixe à delicia, que é um prato eminentemente fortalezense. Que aprendi a fazer em Fortaleza e do qual gosto muito também.

Pensei em quantas pessoas em Fortaleza estariam comendo a tal maxixada naquele dia e me ocorreu então que a maioria das pessoas da cidade têm raízes interioranas, como o maxixe e o carneiro. Fortaleza e interior... Destinos indissoluvelmente ligados. Houve tempo em que o processo de desenvolvimento do Estado se dava de forma bastante atomizada, criando territórios e nichos de desenvolvimento econômico em torno de cidades de médio porte litorâneas ou do sertão, com comunicação incipiente com a capital. Hoje é inconcebível pensar Fortaleza dissociada do restante, seja pelas relações econômicas, seja pelos problemas de emprego, saúde e educação. Evitei, entretanto, pensar nesses pormenores. Para não ter indigestão e estragar meu banquete cearense.

No entanto, a maxixada com carneiro tinha clarificado essa relação indissolúvel da capital com o interior, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, como um casamento inevitável e cheio de perturbações. Dispensei a sobremesa, pois os pensamentos derivaram para as correntes que prendem esta cidade, como tantas brasileiras,  em um modelo de desenvolvimento cada dia mais caótico e perturbador para o ser humano.

Esta cidade não existe sozinha e não pode ser planejada como se o restante do Estado,  e  sua população, por lances de muitas necessidades, carências e falta de perspectivas não tivesse que recorrer a ela permanentemente. Fala-se em planejamento da cidade, mas esquece-se de que seu destino está entrelaçado indissoluvelmente com os problemas do desenvolvimento,  da miséria e dificuldades econômicas da população de todo o Estado. Questões jogadas ao ar para qualquer cidadão ou cidadã, prefeito, governador e autoridades competentes, independentemente de qualquer escolha partidária e política.

As questões suscitadas com a maxixada não têm mesmo cores partidárias, mas parte da constatação da insuficiência do modelo de desenvolvimento do país, do Estado do Ceará e Cia., para resolver os problemas que nos assolam. A relação campo-cidade e o questionamento do atual modelo de desenvolvimento não podem estar fora de qualquer planejamento da cidade de Fortaleza. Estamos no mesmo barco.

Depois, no dia seguinte, soube da comemoração em mega show na Praia de Iracema. As delegacias de polícia ficaram cheias no dia seguinte. Pessoas  fazendo Boletim de Ocorrência pelos assaltos. Ainda tomada pelas reflexões um tanto céticas geradas com a maxixada perguntava-me: comemorar por que e para que? Inocentemente fui caminhar na praia, como sempre faço, motivada pelo meu colesterol e acreditando ser a Beira-Mar um lugar vital da cidade e democrático pelo afluxo de pessoas de todos os lugares da cidade e de todas as classes sociais.

Como diria um interiorano rural na cidade, ainda no rescaldo da comemoração fui pega voando baixo por um assaltante - fui assaltada - com desdobramentos de várias ordens, e assunto pra muito tempo, pelo menos para uma cronista. Mas, deixemos esse assunto para a próxima...

 

§OS ESPAÇOS DA CIDADE DE FORTALEZA ...- 28.03.2008

§AS VELAS DO MUCURIPE - 10.07.2007
 
 
 
 
 


     
Verônica Maria Mapurunga de Miranda  

Dia Comum (23) 

Maio de 2008

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