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Foto da Beira-Mar -Fortaleza -Ce,  por Verônica Maria Mapurunga de Miranda -Junho de 2007


 

AS PONTAS DO ICEBERG DA VIOLÊNCIA COTIDIANA

 

ARQUIVOS

Terminei a última crônica sobre a cidade com um assalto. Infelizmente um assalto à minha pessoa em plena Beira-mar, na cidade desposada do sol, no meu tracking cotidiano para manter a saúde. Digo-lhes que minha saúde ficou abalada e a saúde de meu marido, que me acompanhava na caminhada, ficou pior ainda. Tentando me proteger do punguista que me soqueava e puxava uma pequenina bolsa que eu portava, meu marido acabou caindo em um barranco e fraturou o punho.

Em meio dos transtornos causados pelo assalto perguntava-me: por que fui assaltada? Lembrava-me de uma tia-avó já falecida que tinha um humor muito especial, e quando minha avó ficou viúva ela lhe escreveu uma carta, na qual dizia: Prezada Julitinha, você pensou que era melhor do que suas irmãs, que já são todas viúvas? Pois não é não. Agora chegou a sua vez. Minha avó que andava muito deprimida com a morte de meu avô, conhecendo o humor de sua irmã não resistiu e caiu na gargalhada. Saiu do seu estado depressivo.

Pensava sobre minha tia-avó e o que ela diria para mim nessa situação: Prezada sobrinha você estava pensando que era melhor do que a maioria dos fortalezenses que já foram assaltados? Pois não é não, agora chegou sua vez.

Pois é, não adianta mesmo ficar nesse "orgulho de nativa", achando que só os turistas vão ser assaltados. Essa palavra nativa que sempre abominei desde a primeira vez que a ouvi sendo usada para designar os habitantes de Canoa Quebrada há bastante tempo atrás. Mas é assim que acabamos nos sentindo na alta estação  quando a cidade é tomada por turistas. Na baixa estação o rescaldo da movimentação turística e a sobra  dos assaltos fica também para os "nativos", e com a desvantagem da falta de policiamento nesse período, ou da presença de um policiamento menos ostensivo.

Verdade é que a onda de violência na Beira-mar, denunciada por muitas pessoas e até por autoridades do Estado cearense e brasileiro que também foram recentemente assaltadas por lá, tem crescido de forma assustadora. Não sou jornalista investigativa, nem ando correndo atrás de assaltos, mas como cronista que observa a realidade em volta e como cidadã fui tomando pé dessa realidade através do "observatório popular", que é nada mais e nada menos do que a opinião dos cearenses que são extremamente curiosos, e na rua e em vários lugares aproximavam-se de meu marido por mim acompanhado, para saber o que aconteceu com seu braço. Ao saberem do assalto e solicitando detalhes iniciavam um rosário de contos recentes de assaltos na cidade.

Digo-lhes, portanto, que a Beira-mar como ponto vital da cidade representa somente o que já vem acontecendo nos seus vários lugares e bairros.

Digo-lhes, ainda, que fiquei conhecendo muitas e variadas formas da tal violência urbana. Um taxista contou das várias vezes que havia sido assaltado e que um dos assaltos - pasmem- foi a mando de um amigo seu, dono de um posto de serviço onde ele tinha seu ponto de táxi. O tal amigo convidou a gangue que o assaltou à mão armada. Apesar do amigo ser um "traíra", que ainda ficou com uma comissão do assalto, segundo o próprio taxista descobriu depois, ele "agradeceu a Deus" ter sido assaltado a mando do falso amigo, pois ele tinha dado ordens expressas para a gangue não atirar nele, somente roubar.

Essa, uma das tantas histórias que me revelaram o lado bandido de pessoas aparentemente insuspeitas. Ou seja, os bandidos atuais não são somente aqueles de gangues ou profissionais de carteirinha, mas estes trabalham em conluio com aparentes cidadãos de bem e profissionalmente situados. Se esses fatos não servirem para nos levar a uma paranóia coletiva - ninguém pode mais confiar em ninguém - eles servem pelos menos para medir o nível da violência urbana a que nós cidadãos e cidadãs brasileiras chegamos.

Outro aspecto que pude observar, foi a posição defensiva em que ficam as pessoas, algumas aparentemente até torcendo pelos assaltantes quando diziam: Também o que você queria? Foi correr atrás de bandido ou Quem mandou reagir ao assalto? De fato, precisa ser muito covarde um homem para ver um punguista soquear sua companheira e não reagir e não defendê-la. A propaganda defensiva e a favor da violência chegou a um nível grande de degradação e inversão de valores. Isso não é auto-controle. Pode até parecer e ser perigoso reagir a determinados tipos de assalto. Mas essa atitude tão temerosa dá também uma margem de liberdade para todo tipo de violência explícita.

São absurdas as observações como essas, tanto quanto outras, feitas pela polícia e cia. nos meios de comunicação e diretamente para as pessoas, de que não se pode mais sair com bolsa, nem portando bijuteria, relógio, etc. Em outras palavras está se dizendo: não atraia assaltantes porque a rua e o espaço é deles de direito. Cidadãos e cidadãs comuns não têm direito de sair à rua minimamente tranqüilos e com liberdade, somente os assaltantes.

Isso, tem também outros significados: de mostrar a impotência das pessoas diante da falta de segurança, que o Estado lato sensu não tem conseguido prover. Pelo contrário, muitos dos seus braços ou tentáculos estão bastante contaminados com essa violência. Todo dia nos noticiários aparecem notícias de gangues de colarinho branco, nos mais diversos setores profissionais do Estado brasileiro, inclusive naqueles que deveriam prover a lei, a ordem e a justiça.

A sensação de impunidade que perpassa esse tipo de violência explícita e outras não tão explícitas tem ganhado espaço nos noticiários e dá conta das desigualdades e desequilíbrios das relações de poder em nossa sociedade. Mediando todas essas ações estão os mecanismos corrompidos até a medula de um Estado brasileiro velho e carcomido. Mecanismos estes que continuam através de remendos e dos jogos de forças políticas e poder econômico do país. A situação é grave porque nos processos de transformação coletiva quando não são aceitas as necessidades de mudanças estruturais e os bloqueios são grandes para isso estabelecem-se  crises e tensões muitos fortes. Dissemina-se a guerra civil declarada e cotidiana.

Para todos os defensores da não transformação do Estado, da continuidade da impunidade, da sociedade autoritária, do pouco espaço público onde a reclamação e estabelecimento dos direitos possam ser readquiridos é bom tornarem-se cientes de que o caos estabelecido por uma crise profunda atingirá a todos - eu, tu, ele , nós, vós, e eles todos que não querem as transformações necessárias.

Nem vou citar exemplos históricos dessa situação, pois todo mundo conhece alguma coisa da revolução francesa e poderíamos como humanidade ter aprendido alguma coisa com  a história e suas crises. Processos sociais, culturais e afins que têm que ser desatados e que buscam o equilíbrio de forças sociais conscientes ou inconscientes serão realizados por bem ou por mal. A tomada de consciência, compreensão e aceitação das mudanças nesses processos é a única forma de evitar o "escurecimento" total que já está sendo ventilado por vários pensadores atuais, em várias áreas do pensamento e da cultura.

Quem se sentir responsável, seja como cidadão, como político, como possíveis indutores dessas forças sociais, que comece a atuar, fazer a sua parte, antes que seja tarde demais. De fato, com o ceticismo que se instalou na população fico pensando se realmente há condições e tempo para evitar essa "transformação de tudo em pó". De qualquer forma, quem viver verá.

Refletindo de outro ângulo, as violências explícitas são somente as pontas do iceberg de uma violência cotidiana e encoberta, que ocorre nos lares, em ambientes profissionais e que está sendo trivializada. Perpassando tudo isso a relação desigual de poder, seja poder econômico, seja poder político, ou de conhecimento técnico-científico. A cultura autoritária que resulta do desequilíbrio de poder nas relações humanas e sociais alimenta e nutre essa violência explícita.

A cultura da violência, ao contrário do que muita gente possa pensar, não suporta o conflito natural do equilíbrio de poderes, não suporta a interdependência e a alteridade, prefere a subjugação, a dominação, a lei do mais forte, levando a uma polarização absurda dos poderes e forças sociais. A outra face dela é a propaganda da paz dos cemitérios. Não basta só sair propagandeando a paz ou fazer cursinhos de fim de semana sobre a paz, sair de lá doutor em paz e depois descarregar sua violência reprimida na primeira pessoa desprotegida ou que depende de seu cuidado ou atenção para viver e estar bem.

O simulacro da paz é pior do que  o reconhecimento do potencial de violência que todos carregam em nossa sociedade atual. A transparência é mais saudável do que a hipocrisia, em todos os sentidos. Todo o potencial de violência aparentemente reprimido volta  a nos cobrar de todos a realização dessa energia.

É preferível parar por aqui, porque como diz a canção : o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar. Não sou mesmo nenhuma arauta dos acontecimentos próximos, simplesmente me coloco aqui como uma cronista cidadã preocupada com os momentos turbulentos que vivemos, e que tem a compreensão de que a autonomização do medo gerado nesse tipo de sociedade pode nos levar novamente aos tempos de Lampião, de forma reprodutiva, ou seja, não teremos somente um Lampião, teremos muitos.

No ano 2003 escrevi um artigo sobre isso. Mas esse assunto fica para a próxima.

 

 

- COMEMORANDO A CIDADE. PRA QUE? POR QUE? E
 OUTRAS OCORRÊNCIAS...23.05.2008
- OS ESPAÇOS DA CIDADE DE FORTALEZA ...- 28.03.2008
- AS VELAS DO MUCURIPE - 10.07.2007
 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda

 
       

Dia Comum (20) 

julho de 2008

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