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O Pensamento do Coração (Fragmentos)

 

James Hillman

Fotomontagem Áisthesis - por Veronica M. Mapurunga de Miranda - Janeiro de 2005

"Que tensão, que esforço supõe viver num cemitério! Que tremenda força de vontade faz falta! Certamente sou presa das ideologias e dos cultos que aliviam o peso dessa subjetividade. Certamente tenho uma necessidade desesperada de narcisismo, não porque tenha sido desatendido ou continue desatendendo minha subjetividade mais recôndita, senão porque um mundo sem alma não pode oferecer intimidade, não pode me devolver a mirada, não pode me mirar com interesse, com gratidão, nem aliviar o isolamento essencial da minha subjetividade."

 

(...)" Podemos responder desde o coração, despertá-lo de novo.No mundo antigo, o órgão da percepção era o coração.O coração estava diretamente conectado às coisas por meio dos sentidos.O termo grego que designava a percepção ou a sensação era áisthesis, que originalmente significava essa inspiração, esse assumir, esse se quedar sem alento, essa exclamação  que produz o assombro diante das maravilhas do mundo: uma resposta estética diante da imagem (éidolon) que se nos apresenta.Na antiga fisiologia grega e na psicologia bíblica, o coração era o órgão da sensação, porém também o lugar da imaginação. O senso comum (sensus comunis) hospedava se  dentro  e em torno do coração, e seu papel consistia em apreender as imagens. Para Marsilio Ficino também o espírito do coração recebia e  transmitia as impressões dos sentidos.O coração tinha uma função estética."

" Na resposta estética do coração, a ação de sentir o mundo e a ação de imaginá-lo não estão separadas, como sucede diferentemente nas sucessivas psicologias derivadas dos escolásticos, dos cartesianos e dos empiristas ingleses (...) 

"Por "coração" eu não entendo o subjetivismo sentimental que sobreveio como conseqüência romântica da perda da áisthesis.  (...) A anima mundi não é percebida se o órgão dessa percepção permanece inconsciente, sendo concebido só como uma bomba física ou como uma habitação pessoal de sentimentos." (...)

 (...) Os movimentos ecologistas, o futurismo, o feminismo, o urbanismo, as ações de protesto e o desarmamento, a individuação pessoal, não podem, por si sós, salvar o mundo da catástrofe inerente a nossa própria idéia do mundo. É necessária uma visão cosmológica que salve o fenômeno "mundo" em si mesmo, um movimento da alma  que se dirija além das conveniências até a fonte do persistente perigo que ameaça o nosso mundo: a funesta negligência, a repressão da anima mundi." 

"Reprimida, mas presente: pois a idéia da alma do mundo recorre todo o pensamento ocidental, para não falar das culturas arcaicas, primitivas e  orientais. Portanto o que lhes peço que tenham em consideração não é nem novo nem completamente radical, senão o que tem sido sustentado de diversas maneiras por Platão, os estóicos, Plotino e as místicas judia e cristã; manifesta-se esplendidamente na psicologia renascentista de Marsilio Ficino, e também em Swedenborg, e é venerado na mariologia, na devoção sofianica e na sejiná. Encontramos alguns conceitos desta visão nos românticos alemães e ingleses e nos transcendestalistas dos Estados Unidos, assim como em filósofos panpsiquistas de diversas tendências, desde Leibniz até Hartshorne passando por Peirce, Schiller e Whitehead. A alma do mundo retorna também na postura pluralista de William James, através do seu interesse por Fechner e sua atenção "ao particular e ao pessoal" ou à "singularidade" dos sucessos em oposição às totalidades abstratas. A anima mundi reaparece sob outras formas, como o "coletivo"* em Jung, como o caráter fisiognómico na psicologia gestáltica de Kofka e Kohler, na fenomenologia de Merleau-Ponty ou de Van den Berg, na poética da matéria e do espaço de Bachelard, inclusive em Roland Barthes, e, naturalmente, uma e outra vez, nos grandes poetas , sobretudo, durante este século, em Yeats, Rilke e Wallace Stevens. O que estou propondo tem uma nobre linhagem, e, se cito estes nomes não é só para exibir o pedigree da idéia senão para sugerir que é precisamente a anima mundi a que lhes confere nobreza. (...) 


 

(...)" Mas no momento em que cada coisa, cada sucesso, se apresenta de novo como uma realidade psíquica - e para isso não se necessita da magia, da sincronicidade, do fetichismo religioso, nem nenhum ato simbólico especial -, então estou preso em uma duradoura e íntima conversação com a matéria. Então a gramática se distende :sujeito e objeto, pessoal e impessoal, eu e tu, masculino e feminino, encontram novas formas de entrelaçar-se; os verbos em plural podem não concordar com seus respectivos nomes no singular, pois a imaginação das coisas lhe fala em sua língua ao coração. Então Eros desce desde sua condição de princípio universal, de abstração do desejo, até a erótica verdadeira das qualidades sensíveis das coisas: materiais, formas, movimentos, ritmos." (...)

 


Quando recorro à história em busca de um modelo para esta alma das coisas manufaturadas, estou fazendo um movimento clássico, renascentista: volto ao antigo Egito, aonde o objet parlant estava ao alcance da mão. Todas as coisas falavam dos deuses, que estavam presentes em todas as realidades, em uma caixa de cosméticos, em um vaso ou em uma jarra, no rio ou no deserto;  e ainda que as coisas se fizessem em serie - milhares de unidades a partir do mesmo molde-, cada uma delas seguia sendo um objeto falante. A singularidade numérica não garante a unicidade, que procede mais do potencial imaginal, do deus que há na coisa." (...)


 

(...) Aquele imenso edifício inerte - a doutrina de um mundo sem alma-, açoitado pela chuva ácida, manchado de pinturas, já foi explodido em mil pedaços em nossas fantasias. Não obstante, esse cataclismo, essa imagem patologizada do mundo destruído, está despertando novamente nossa consciência da alma do mundo. A anima mundi agita nossos corações para que respondam: finalmente, in extremis, nos interessa o mundo, começamos a amá-lo, e as coisas materiais voltam a ser amáveis." (...)


(...)"A reelaboração de nosso conceito de realidade psíquica implica, portanto, a reelaboração de nosso passado cultural, a tradição que segue alimentando tanto as teorias que formulamos como nossa idéia da realidade. Insisto em que, ante as fantasias de catástrofe, a tradição a que devemos recorrer não se encontra no Himalaia, nem em Monte Atos, nem no terror niilista que pressagia a catástrofe, senão no coração imaginativo da cidade renascentista, em suas ruas, em seu idioma, em suas coisas, na cidade do coração do mundo."

"Não poderemos avançar nesta direção enquanto não cambiarmos radicalmente de rumo, aprendendo a valorizar mais a alma que a mente, a imagem que o sentimento, o singular que o universal, a  áisthesis e a imaginação que o logos e o pensamento, a coisa que o significado, a observação que o conhecimento, a retórica que a verdade, o animal que o humano, a alma que o eu, o que e o quem que o porque." (...)

(...)Grande parte daquilo que não é mais querido teria que vir abaixo para que a emoção contida nestas apreciadas relíquias pudesse romper esses recipientes e fluir de novo para o mundo."

"Romper esses recipientes significa retorno, significa regressar ao mundo, devolver-lhe o que lhe tiramos quando nos apropriamos de sua alma. Este retorno nos faz considerar o mundo de outro modo, nos faz respeitá-lo porque seu rosto mostra respeito e consideração por nós. Nós lhe mostramos nosso respeito simplesmente olhando-lhe outra vez, re-spectando-lhe: voltando a olhar com os olhos do coração."

"Este respeito nos obriga a reconstruir nossa linguagem para que volte a expressar qualidades: falar do que temos adiante chamando-o por seu nome  e não através dos sentimentos que nos inspira, de uma abstração da realidade (uma linguagem com referências que não sejam simples correlatos objetivos de nossas emoções ou simples  descrições objetivas). O vazio de nossas palavras se encheria de imagens concretas: nossa linguagem animal devolvendo o eco do mundo."


* N. T.-Inconsciente Coletivo
Traduzido do livro El Pensamiento Del Corazón - Anima Mundi: el retorno del alma al mundo -  de James Hillman - Ediciones Siruela-Madri -Espanha, 1999 pp. 155-187
Plano de fundo : Fotomontagem Áisthesis -Criação de Veronica Maria Mapurunga de
Miranda - Janeiro de 2005,  sobre a escultura Mulher-peixe. (Vide Galeria)

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