Principal

Viçosa

Viçosa ...Tempos de outrora

Viçosa...Anos e anos

Guia Viçosa

 
 

Culinária

Em Memória

Tradições e Emergências Culturais

Reminiscências da Casa Antiga

  Ainda lembro, hoje, vendo tuas salas, teus móveis, tuas paredes antigas, o que fostes tu, Casa Antiga. Os tijolos quadradinhos, em algumas salas e quarto, feitos no tope, como na maioria das casas da cidade. Quando lavados ficavam alvinhos, e os móveis antigos recendendo a óleo de peroba. O assoalho encerado com escovões antigos, e as muitas portas da casa, em dias de festas, com cortinas de filó e fitas delicadas em laços.

 Se era aniversário importante, alguma outra festa significativa ou época de novenas da padroeira, poderia ter alvorada da banda da cidade, que tocava em frente a casa, enquanto na sala da frente ouvíamos respeitosamente  todos os dobrados e  valsas antigas, para depois  convidar os músicos da banda para o café da manhã. Se vinham buscar a santa padroeira que havia pernoitado na casa, logo saíam tocando o seu hino: “Virgem  Santa de Assunção nossa  santa e padroeira, dai-nos vossa proteção, seja nossa vanguardeira...”.

 O corredor da entrada possuía uma meia grade simpática, onde as pessoas podiam entrar até lá, já que a porta ficava sempre aberta, e batiam palmas para se fazerem anunciar. Algumas vezes, pela manhã, passavam as verdureiras, com seus balaios, recendendo a muitos aromas, vendendo temperos e ervas diversas. Gritavam da grade: tempero verde...maacela!

  Os parentes mais íntimos, abriam seu ferrolho e passavam direto.Vovô Clóvis todo dia em sua caminhada até seu sítio, entrava na ida e na volta, passava pela grade, arrastando os pés casa adentro, fazendo barulho com as sandálias, até chegar na garrafa de café na copa. Depois de cumprimentar a todos e tomar seu cafezinho seguia adiante, na ida e na volta do sítio. Mas dava um certo receio quando passavam as tropas de arretirantes que eram chamados ciganos. Corriam estórias de raptos de crianças por ciganos, e eu e meus irmãos, ainda crianças, corríamos a nos esconder quando eles chegavam com roupas em trapos coloridos pedindo água, comida e dinheiro, naquela grade.

 Ao lado do corredor, o quarto fantástico de nós crianças, que fora uma mercearia até meu pai se aposentar por doença, e passar a ser um depósito da gás butano, lugar em que vendia e representava vários produtos,  desde os da gás butano, até outros, como máquina de costura, fogões à lenha, fogões à gás, lampiões. Uma miscelânea de produtos não encontrados na cidade naquela época.

 Conservava um armário do tempo da mercearia com vários produtos não vendidos, como penas antigas para escrever, tinteiros, fitas, pregos, cadernetas, pílulas do Dr. Mattos, Sulfa em comprimidos e tantas outras coisas, que nós crianças gostávamos de remexer e brincar. Esse quarto chamado a bodega, hoje com outra uitlidade, era também um ponto de encontro aos sábados, dia de feira, onde as pessoas da zona rural vinham fazer compras, deixar suas facas (peixeiras) - não podiam levar as facas para a feira, senão a polícia tomava - cada qual com uma bainha mais bonita e decorada.

 Era também lá, local para pegar cartas. Cartas de familiares das pessoas da zona rural, que moravam fora. Enviavam para nossa casa todas as cartas, e os parentes iam buscá-las no dia de feira. Até dinheiro enviavam. Aos sábados, também, apareciam os mestres do pife (pífano). Alfredo Miranda escolhia os melhores “pifes” para que eles tocassem. E se considerava um aprendiz quando os ouvia. Ali, eles tocavam, trocavam idéias sobre as músicas e davam notícias dos demais perdidos na zona rural de Viçosa e de cidades das proximidades. Eu, bem pequena, ficava embasbacada ouvindo-os tocar vassourinha, valsas, e depois tico-tico no fubá. Meu pai dizia que quem conseguia tocar vassourinha e tico-tico no fubá, sem desafinar, sem desistir de cansaço e sem sair do ritmo é porque era mestre. Eu tive a felicidade de escutar esses mestres anônimos.

 Ali, na bodega também, todo final de tarde, durante vários anos, tocava uma sirene. Alfredo Miranda e seu compadre Chico Caldas estavam chamando os trabalhadores da construção do Colégio Nossa Senhora das Graças, ou Patronato Tenente Ângelo de Siqueira Passos, em frente, para fazerem o pagamento do dia. Colégio construído graças a campanha encetada pelo benfeitor Chico Caldas teve Alfredo Miranda como braço direito durante toda a sua construção.

 Todos os dias, Chico Caldas passava duas vezes pela nossa casa. Depois de fazer a visita à construção, pela manhã, chegava com um cipozinho de marmeleiro e um canivete bonito, que ficava raspando até ficar bem branquinho, enquanto conversava com sua afilhada Terezinha, que preparava as roscas, petas e bulinhos e esquecidos do dia, em uma época em que fazia isso só para o consumo da casa. Ali saíam estórias antigas, reminiscências, um pouco da Viçosa que já fora, no dizer dele tempos áureos. Vez ou outra trazia um corrinboque de rapé, que nos obrigava, crianças, a tirar uma porção e cheirar. Saíamos espirrando e irritados com aquela mania dele. Ele ficava rindo e dizia que fazia bem à saúde. Bebia sua caninha, de forma magistral, diariamente, e dava aulas de como se devia bebê-la, grande conhecedor que era de cachaças e do ofício de bebê-la. Depois de um trago passava um pouco da aguardente detrás das orelhas. Dizia que refrescava maravilhosamente. Era um ritual diário, a que estávamos acostumados. Quando chegava alguém novo na cidade, mesmo que de passagem, ele levava para conhecer seu compadre Alfredo Miranda e tomar uma caninha boa de Viçosa. Grande Chico Caldas!

 A calçada da casa, antes toda de pedra e alta, era um lugar para estar sábado pela manhã, vendo os comboios que passavam para ir para a feira. Eu, esperando que passasse a carga de cerâmica do tope. Vinham os brinquedinhos de cerâmica, que eu adorava e quebrava durante a semana. Meu pai os consertava com cera de abelha, mas sábado estava eu lá à espera. Alfredo Miranda conversava com os passantes. Conhecia todo mundo daquelas redondezas.

  Ao lado direito da casa havia três pés de malváceas, árvores grandes onde amarravam cavalos, nos dias de feira. Eu, e algum outro irmão, sem meus pais perceberem, tirávamos os cavalos e dávamos uma volta no quarteirão. Quando minha mãe percebia saía de casa aos gritos. Tarde demais, já estávamos mesmo de volta. Quando não havia cavalos amarrados subíamos nas malváceas, crianças peraltas que éramos.

 Nessa mesma calçada, dos vários lados da casa, brincávamos de roda (rondas infantis) de calçadinha de ouro, do galo, de boneca (amarelinha), e tantas outras brincadeirinhas, com as crianças da vizinhança, ao cair da tarde. Brinquedos, que depois com a chegada da tv desapareceram. Lá, também, nessa calçada, aconteceram os leilões, quando meus pais eram noitários de alguma festa religiosa, fosse da padroeira, fosse do Menino Jesus, ou de São Francisco. Os noitários que hospedavam o santo encarregavam-se de arrecadar dinheiro para a igreja naquele dia e daí os leilões.

  Os leilões, mesas onde se arrumavam as mais variadas prendas. Desde os assados, enfeitados, as roscas grandes de goma, os bolos, as bandejas de frutas,  galinhas, bodes e até bezerros e bois. Além disso,  haviam as cestinhas surpresas, decoradas e com um conteúdo secreto que faziam as crianças aperrearem os pais para arrematarem. Uma quantidade de cores e cheiros, que se mesclavam, inigualáveis e únicos quando buscamos na memória aqueles tempos. Em torno da mesa, com uma certa distância, estavam as cadeiras para os convidados: amigos, parentes, pessoas conhecidas da cidade, comensais rotineiros dessas atividades festivas. Era de bon ton, que os participantes leiloassem prendas e as oferecessem aos demais, que por sua vez retribuíam o gesto. Era assim uma boa ocasião para colocar em prática a cortesia, e para se reforçar os laços de amizade e vizinhança em uma sociedade que se queria solidária. A banda de música, também convidada, tocava a cada batida trechos das músicas já bem conhecidas. Esses leilões, dependendo da quantidade de prendas podiam arrastar-se pela noite. Afinal de contas, ninguém tinha pressa.

 As noites de festas juninas, com uma fogueira enorme, tradicionalmente feita por Alfredo Miranda, que de tão grande queimava à noite inteira, onde se “passava fogo” e se faziam muitas “pulutricas”. Para passar fogo era necessário saber a que iam, se queriam ser compadres, ou padrinhos e afilhados. Era o batismo de fogo. O padrinho (madrinha) e o/a afilhado(a) sobre a fogueira davam-se as mãos e pronunciavam as frases: Santo Antônio mandou dizer e São João confirmou, que você seja meu afilhado (que você fosse meu padrinho). Viva São João! Viva meu afilhado (meu padrinho)! Trocavam de lugares e repetiam. O mesmo faziam os compadres.

  As pulutricas  e adivinhações eram variadas. Havia as do espelho em torno da fogueira, a faca na bananeira, do pêndulo com aliança e tantas outras. Como nas demais casas, que iluminavam toda a cidade com fogueiras, sentados pertos da fogueira tomava-se cauim ou aluá, bebida feita de mandioca. Assava-se batata doce, peixe ou carne, e comia-se muito amendoim, pipoca, bolos de puba (carimã), pé-de-moleque ou manzape e muitos outros. Muito se fazia nessa calçada.

 A sala de visitas, onde tinha um rádio de 4 faixas, em que ouvíamos os últimos sucessos, e contos de fadas no domingo, no programa mundo da criança. Em algumas tardes, com minhas primas dançávamos de duplas. E às noites, ali terminávamos os deveres escolares, enquanto minha mãe cantava balançando a caçula para dormir, e meu pai tocava pífano em sua cadeira de balanço de vime. Em uma época que faltou energia na cidade, ficávamos à luz de lampiões grandes, todos concentrados em suas tarefas, enquanto Alfredo Miranda tocava suas mazurcas e valsas plangentes, e Dona Terezinha trinava no quarto: “praieira eu sou aquele pescador... que no clarão da lua cheia, nós dois sentados na areia fizemos juras de amor.”

O quartinho de hóspedes, ocupado sempre pelos parentes de meu pai, que vinham da zona rural, na época das festas religiosas. Dentre eles tia Rosalina, grande leitora de “romances”(cordel) e que nos contava estórias incríveis. Aprendi estórias, que depois soube, eram do Decameron de Bocaccio, que ela havia lido em cordéis. Ela era uma grande e entusiasta contadora de estórias, que vibrava. Minha mãe ria, contando que vira tia Rosalina animadíssima contando estórias enquanto eu e minha irmã dormíamos no seu colo. Depois, quando já adolescentes, eu e minha irmã nos mudamos para lá, para o quarto de hóspedes. E aí era a época das serenatas. Quantas noites dormimos, ao som plangente de violões e de rapazes enamorados ou não, que com seus violões ou acompanhados do grande seresteiro da cidade, Zé Músico, cantavam cantigas de amor. E dos reizados, quando não participávamos, em conjunto com um grande grupo de moradores da cidade, ouvíamos agradecidos aquela brincadeira anual:

 Ô de casa! Ô de fora! Manjerona que está aí

É o cravo, é a rosa, é a flor do bulgari

Esta casa está bem feita, por dentro por fora não

Por dentro cravos e rosas, por fora manjericão.

 No dia seguinte voltavam para buscar as prendas. Uma grande festa de confraternização era realizada com as prendas recebidas. Muita comida, muita bebida e dança à noite toda.

O quarto dos meus pais, onde havia a lembrança dos nascimentos. Partos em casa, com a parteira Da. Canãn, a parteira talvez mais conhecida da cidade, que comandava todo o ritual do nascimento, desde o cuidado da mãe, do filho, e cuidava da disciplina da casa, nos primeiros dias de resguardo. A comida da parturiente era especial, no quarto. Logo ao nascer, o bebê era defumado. Faziam incensos de alfazema em fogareiros de cerâmica, ficava todo perfumado. A roupa do bebê também passava pela alfazema. Além do perfume, parece que se pretendia afastar os maus espíritos, ou más energias.

 A grande farra, entretanto, era mexer no guarda-roupa antigo de meus pais. Ali havia uma gaveta, onde Alfredo Miranda guardava algumas antiguidades, como coleção de moedas antigas, canetas antigas, canivetes e agendas de todo tipo que ganhava no final de ano, dos amigos que moravam fora, álbum de fotografias antigas da família, e o seu “pife predileto”. Sempre escolhia um que tivesse melhor som, envernizava-o e era só dele.

 O quarto da minha primeira infância, com uma janela para o jardim, com canteiro de hortências, que o sol entrava morno, e vinha brincar nas manhãs. Lembranças das doenças de criança, em que tínhamos que ficar de quarentena, e só podíamos olhar o jardim.

O jardim, tempos depois acabado e reformado, era delicioso. Tinha três canteiros de rosas que se chamavam “la france”, com  bordaduras de violetas. No canteiro central havia, também, dálias brancas, amarelas e roxas, um pezinho de perpétua, um ramo de não me deixes, outro de saudade amarela. Nos canteiros que davam para a varanda tinha gerânios ou cravos. Além disso, vasos com crisântemos, pica-pau, espada de São Jorge, vários tipos de crótons, palmeirinhas e samambaias, chamadas de escadinhas, que nas festas iam para dentro da casa e enfeitavam as salas.

Um tanque servia para aparar água da bica e regar o jardim. Ali, na época das chuvas o tanque transformava-se em uma corrente de água, onde brincávamos de barquinhos. Borboletas e beija-flores passavam muito por lá, e nós crianças observávamos com curiosidade e algum receio, quando o beija-flor saía do jardim e entrava na casa. Diziam que era mau augúrio. O beija-flor, hoje, nos chega com outros avisos e beija as nossas lembranças.

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda

Fortaleza 06.12.1999

 

P.s – Esse texto foi escrito em dezembro de 1999. Recentemente um beija-flor passou novamente pela minha janela. Lembrei que era tempo de publicá-lo. 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - Dezembro de 2011

 

Plano de fundo: Casa Antiga dos meus pais - Foto por Verônica Maria Mapurunga de Miranda -

outubro - 2004


Viçosa do Ceará-Uma página não oficial

EM ARTESANIAS - DE VERÔNICA MIRANDA-www.veronicammiranda.com.br

A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE SÍTIO NÃO ESTÁ PERMITIDA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS