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DINDIA: A HERANÇA MATRILINEAR


MAPURUNGA: UMA FRUTA, UM APELIDO, UMA ANCESTRALIDADE.
 

         MAPURUNGAS: UM SONHO INTENSO
 

   DINDIA (A curandeira) - Escultura  em epoxi sobre garrafa de azeite reciclada por Verônica Maria Mapurunga de Miranda. Agosto/ 2018


Desde criança ouvia falar sempre de Dindio, mas pouco de Dindia e somente nos anos 90 do século passado fiquei sabendo que ela era de Jacarey, no Piauí, e era da família Fontenele. E mais recentemente em conversas com minha tia Marina Mapurunga fiquei sabendo o que ela tinha ouvido dos mais antigos: Em época em que os casamentos eram arranjados, os pais de Dindio tinham ido ao Estado do Piauí para buscá-la e casá-la com ele e acalmá-lo, porque ele era muito namorador. E os pais queriam garantir um bom casamento para o filho, provavelmente que garantisse uma posição familiar socialmente e culturalmente aceita. Certa falta de informação, ausência, faz-nos  lembrar que houve certo esquecimento da linha matrilinear formada por ela primeiramente e depois por Idalina Ana Fontenele Mapurunga, minha bisavó pelo lado materno, que era também Fontenele.

O tempo passou e como eu fosse pouco interessada em genealogia essas questões ficaram suspensas. No mês de agosto de 2018 recebi a visita de uma prima que mora nos Estados Unidos e estava de férias. Ela observava meus trabalhos mais recentes, quando de repente disse: Que traços marcantes o dessa escultura! Fiquei interessada, vou levá-la. Era uma escultura feita em garrafa reciclada, com epóxi. Mas ela não estava terminada, necessitava os acabamentos, a pintura. A mim também haviam chamado a atenção os traços fortes, diferentes. Combinamos então, que eu faria os acabamentos para minha prima. Quando comecei a pintar a escultura  começaram a me aparecer flashes da fotografia antiga de Dindio e Dindia e no início não consegui entender o que ocorria. E à medida que ia pintando a escultura e os flashes se sucediam comecei a perceber a ligação que havia da escultura com a foto.

 E percebi, então, que a escultura que foi feita como uma curandeira era Dindia mais nova, apesar de eu não tê-la conhecido. A relação ficou muito forte e eu não tive mais dúvida. Aparecia a imagem porque algo precisava vir à tona, ser lembrado, ser esclarecido. E surpresa com o ocorrido o relacionei com o fato de estar de alguma forma trabalhando questões ligadas à ancestralidade. E isso acaba colocando fatos e questões que se relacionam a todo um grupo familiar, considerando que a família é grande.

Comentando isso na casa de uma tia, com duas tias minhas, foram saindo várias histórias e depois começou o interesse de outros membros da família, que não entendiam bem suas origens, querendo saber se éramos descendentes de europeus, já que haviam muitos loiros na família Mapurunga e sempre se falava sobre isso, que os Mapurungas eram loiros. E com todas essas sincronicidades comecei a desenrolar o novelo da história mal entendida das origens da família. A escultura não viajou. Ficou ao meu lado, na mesa de trabalho, enquanto eu desmontava a história conhecida ou mal conhecida por todos da família, para uma mais completa, retomando as partes esquecidas: A linhagem matrilinear pouco conhecida, das Fonteneles, porque já não estava nos nomes da família e a outra ancestralidade que nos liga à terra que é a herança indígena ou cafusa de Dindio, que através do nome Mapurunga (de um apelido porque era da cor da fruta Mapirunga) perpetuou no nome essa ancestralidade, aquilo que liga a família à terra, à natureza.

A dificuldade de fazer isso é que muito pouca coisa havia sobre a Dindia, porque não havia nada escrito sobre ela. E as pessoas guardavam uma memória tão parca de sua existência. Cheguei a me perguntar e à minha prima: Será que nossa tataravó foi também uma curandeira? Sabia que do Dindio falavam que era raizeiro e curador, mas dela não se sabia nada. Havia um esquecimento. Na minha imaginação ela passou a ser uma curandeira à medida que eu  buscava essas origens. Os mortos que precisam de paz. 

Nada ocorre por acaso. E é digno de nota  e perceptível as características da cultura patriarcal que deixou quase apagada as heranças matrilineares, das duas avós Fonteneles, ao mesmo tempo em que confundiu a ancestralidade, esquecendo a herança antiga e autóctone, indígena ou cafusa, do nome Mapurunga. 

 Nessa cultura muito patriarcal e colonial, o feminino era muito negado. Tanto que meu bisavô paterno, segundo confissões de minha avô materna (vide www.veronicammiranda.com.br/vovocemanos.htm)¹ e que conviveu bastante tempo com a família repetia ad nauseam uma frase que parecia comum naquela época e naquelas plagas: Não gostaria de nascer mulher nem que fosse para ser rainha. E gostaria de nascer homem nem que fosse para ser um cachorro. Em um contexto de relações senhoriais, meu bisavô tinha várias terras e em uma delas a "Casa do Passatempo", uma casa no alto, na localidade Lambedouro, onde observava os trabalhadores na faina diária com seu binóculo, enquanto as mulheres se dedicavam à faina doméstica, que na fazenda era muito trabalho. 

Minha avó materna lembrava-se dessa frase dita por meu bisavô, com indignação e atribuía a esse conceito e imagem desvalorizada e ruim das mulheres, os fatos que depois ocorreram na família. Assim como em muitas culturas em que o feminino foi desvalorizado muitas mulheres preferiam ter filhos homens. Sua sogra Idalina sempre se queixava que só tinha tido duas filhas mulheres e preferia ter filhos homens. Elas acabaram morrendo na infância, assim como um de seus filhos, pelas doenças comuns da infância naquelas épocas, e depois disso só nasciam filhos homens. Dos onze filhos somente a caçula foi mulher.

Porque essas questões são repetitivas e ficaram marcadas na vida das mulheres elas trazem a possibilidade  da criação e representação de um animus negativo (contraparte masculina e coletiva nas mulheres, segundo C. G. Jung)², que repercute na formação das filhas mulheres e em suas realizações pessoais e se reestrutura como um padrão arquetípico. É de se imaginar que essas questões que são vistas através das memórias de uma avó, possa ter ocorrido com muitas outras famílias, porque esse era um sentimento compartilhado e engendrado nas relações que vinham desde tempos coloniais se reestruturando, através das gerações.  Assim como a anima (contraparte feminina e coletiva nos homens) que afetada pelo vazio simbólico e a negação da alma indígena e autóctone, acabou tornando-se padrão arquetípico. Esses padrões arquetípicos, que por outro lado geraram dissociações culturais e profundas, que afetam os indivíduos, são também históricos, porque formados em um dado contexto de política colonial, que foi se reproduzindo e se reestruturando, porque silenciado, negado e por não ser compreendido. Por uma questão, também, de poder patriarcal as mulheres não tinham voz.

Assim, quando alguém escreve sobre as famílias que tiveram quatro séculos de caminhada é bom perceber que pela forma dessa caminhada e da colonização dessas antigas famílias geraram-se sistemas parciais autônomos e dissociações culturais, pela negação e esquecimento das complexas relações e desses processos.

A partir dessas representações arquetípicas vemos como é  necessário a transformação coletiva e individual  nas mulheres, de um animus, que em nível coletivo é inimigo da mulher e de uma anima que não pode se ligar à terra, uma alma coletiva à deriva tanto para mulheres, quanto para os homens.

O esquecimento e confusão da contribuição das avós na herança matrilinear desta família mostram o quanto essas questões perpassam a formação e estruturação psíquicas em um nível profundo e de difícil acesso. Aquilo que foi esquecido, mas necessitava de uma compreensão, entendimento, continua visitando as pessoas e solicitando realização, através de formas e sintomas que ninguém suspeita. Assim atuam os complexos autônomos e culturais, buscando ser compreendidos e integrados. O importante de  desemaranhar essas questões em uma família é a possibilidade de ter uma trilha para que outras famílias e indivíduos possam também fazê-lo, buscando na história e nos substratos da cultura  a compreensão, para se poder ter um presente com mais inteireza e liberdade, que em todos os casos e individualmente deverá buscar sua especificidade e concretude.³

Dindia veio, através do tempo, buscar um pouco de compreensão de toda essa história, porque como dizem Jung e junguianos, os conteúdos parciais autônomos que ficaram isolados na obscuridade da falta de compreensão e na dissociação, não sabem que a consciência mudou e tomou outros rumos. E é através da consciência da própria família, nos tempos atuais, sobre os tempos que tão remotamente geraram divisões, e daquilo que era importante e ficou esquecido, que eles podem enfim adquirir paz, para se irem ou se integrarem para sempre.

  Veronica Maria Mapurunga de Miranda - 26.05.2019

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Notas e Referências Bibliográficas:

1.Vovó faz Cem anos- www.veronicammiranda.com.br/vovocemanos.htm

2.Sobre animus e anima vide: -C. G. Jung - C.G.Jung. Estudos Alquímicos. Petrópolis RJ: vozes, 2000. pag.45. e M- L. Von Franz- O Processo de Individuação- in C. G. Jung (Concepção e Organização)- O Homem e Seus Símbolos - Ed. Nova Fronteira. Pag.177 e 191.

3.Isto representa um grande perigo psíquico, pois os sistemas parciais se comportam como quaisquer outros conteúdos reprimidos:induzem forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os elementos reprimidos reaparecem na consciência sob uma forma inadequada. Tal fato, evidente nos casos de neuroses, também o é no campo dos fenômenos psíquicos de caráter coletivo." (...) "O efeito é coletivo e sempre presente; os sistemas autônomos estão constantemente em ação, pois a estrutura fundamental do inconsciente não é afetada pelas oscilações de uma consciência efêmera."

"Se negarmos a existência dos sistemas parciais, julgando ser possível superá-los por uma simples crítica do nome, o efeito dos mesmos nem por isso cessará, embora não possamos mais compreendê-los; a consciência também não conseguirá mais assimilá-los. Eles tornar-se-ão um fator inexplicável da perturbação que atribuímos a algo fora de nós mesmos. A projeção dos sistemas parciais cria uma situação perigosa, uma vez que os efeitos perturbadores são imputados a uma vontade pervertida e externa que, por força, é a de nosso vizinho, de l'autre coté de la rivière. Isto desencadeia alucinações coletivas, incidentes de guerra, revoluções; em resumo, psicoses destruidoras de massa."(Jung, C.G. Estudos alquímicos, Petrópolis RJ: Vozes, 2002, p. 42, 43).
 

 Veronica Maria Mapurunga de Miranda - 26.05.2019


Midi de fundo: Lua Branca de Chiquinha Gonzaga - 1911

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