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VOVÓ FAZ 100 ANOS

GRANDE DAMA DA CULINÁRIA TRADICIONAL DO VALE DO LAMBEDOURO

Foto por Verônica Maria Mapurunga de Miranda - Agosto de 2006

A ancestralidade na árvore da vida

perfaz o caminho de nossas avós

e vai descendo até a raiz

buscando o fundo da terra

onde se encontram

todas as substâncias e propriedades

do que nós somos.

 

Assim escrevi em uma fotomontagem que fiz para a ocasião. Clique e Veja.


 

Julita Nogueira Mapurunga, grande dama da culinária tradicional e da sociedade de Viçosa do Ceará está completando 100 anos. Por coincidência ela é também minha avó e de uma grande quantidade de netos, bisnetos, trinetos e filhos  que estão hoje comemorando a data. Ela já não consegue mais se comunicar com todas as pessoas, já não as reconhece mais. Perdeu-se talvez no mundo do seu próprio começo. Mas no mundo urobórico em que vive não esqueceu as rezas que rezou a vida inteira. Sabe-as de cor e salteadas. Aqui e ali diz uma frase antiga dos velhos tempos, um dito engraçado, e continua com saúde e se alimentando bem, como sempre gostou de fazer. Rodeada de cuidados da filha Terezinha com quem mora, e dos netos e filhos que estão mais próximos, continua lá viva e intrépida como uma árvore antiga da cidade.

Na década de 90 do século recém passado, passando uma temporada em Viçosa do Ceará tive a oportunidade de conviver de forma mais próxima com ela. Já em idade avançada, próxima dos noventa anos, e ainda com muita lucidez e atividade na casa, me relatava  partes de sua vida, nas muitas conversas que tivemos. Almoçávamos juntos, ela, eu e meu marido, ou, então, ela me acompanhava até a sobremesa  fazendo observações diárias do cotidiano da casa e da cidade ou contando os feitos dos tempos antigos, com seus olhos vivos e inteligentes. Os relatos eram, às vezes, cheios de dor, às vezes, cheios de alegria. Depois ia para sua sesta costumeira. Nesse período tornei-me sua empacotadora de presentes. Dizia que eu sabia fazer bem os pacotes. E como ela tinha uma infinidade de aniversários para ir  e aniversariantes para presentear sempre havia um pacote para eu fazer.

Passei a ter uma percepção diferente de minha avó, da nossa avó da infância e adolescência, que esperava os netos com merendas, caldos quentes e apimentados, levando-nos para conhecer os gatinhos que tinham nascido, o casal de veados que criava no quintal, seu pé de xuxu, sua parreira, seus movimentos permanentes, sempre com muita gente em volta. Passei a conhecer sua história de vida, com todas suas dificuldades e lutas para se adequar a realidades diversas e continuar vivendo em situações que exigiram muita força interior, personalidade e aceitação, de uma cultura muito patriarcal que exigia muito das mulheres. Segundo um dito de homens de sua época repetido ad nauseam pelo próprio sogro - Não gostaria de nascer mulher nem que fosse para ser rainha. E gostaria de nascer homem nem que fosse para ser um cachorro - a situação das mulheres não devia ser nada fácil. Ela sempre ficava indignada quando lembrava disso.

Mesmo assim Julita continua viva e intrépida até os 100 anos, como mulher e grande dama, e glorificada por toda a família. Mas com tanta vida e tanto jogo de equilíbrio, em uma família bem grande, já idosa desenvolveu um sestro, que considero de sabedoria. Não discordava mais de ninguém. Para tudo e todos ela  usava muito uma expressão - é mesmo. Os netos percebendo começaram a testá-la. Diziam coisas completamente contrárias e a tudo ela confirmava : é mesmo. Ríamos todos dessa saída que ela provavelmente encontrou para não entrar em conflito em família tão grande, com tantas idéias diferentes. Hoje me pergunto se com essa atitude ela não tenha conseguido resolver um pouco o problema dos contrários.

Quando ainda estava lúcida se cuidava muito bem, da alimentação, da saúde, e tinha bastante humor. Ria às gargalhadas de coisas aparentemente corriqueiras que aconteciam na casa de meus pais, Alfredo e Terezinha, na Casa dos Licores. Um dia, nesse período que lá passei, ao chegar na casa ela estava rindo muito, e disse que estava esperando que chegássemos por lá para contar o ocorrido. Um turista que foi comprar doce e foi apresentado ao doce de Buriti. Não era para ele um doce comum. Meu pai com o entusiasmo de sempre começou a falar do doce e mostrar suas propriedades, inclusive as propriedades medicinais. Um doce bem amarelado e um tanto oleoso, com um  odor forte,  características do doce de Buriti, mas muito gostoso e possuía muita vitamina A, servia para os cabelos e para a queda de cabelo. O turista era um pouco careca. E, de repente, minha avó observando aquela conversa percebeu que o turista se interessou pelas propriedades medicinais do doce e saiu com a pergunta: Seo Alfredo, mas como é que a gente faz mesmo? A gente passa o doce nos cabelos?

Minha avó tinha passado o dia todo rindo. Segundo ela, por achar a proposição tão absurda, imaginando o tal cidadão se lambuzando com o doce de Buriti, para não perder mais cabelos.

Nos seus 90 anos,  uma festa imensa organizada pelos netos, com toda a família e  famílias viçosenses reunidas, fui incumbida de organizar um livrinho com um pouco de sua biografia e escrever em nome dos netos e filhos um pouco dessa trajetória. Para mim não foi difícil, apesar de ter que resumir uma trajetória de vida tão grande. Na verdade algumas pinceladas de vida como denominei. Além da memória da infância e adolescência, ainda estavam frescos os seus relatos de vida, e peguei com ela na ponta do lápis as receitas antigas, que se perdiam no tempo - de receitas do lambedouro e outras - que depois transcrevi um pouco nesta página com o nome de receitas da Vovó. Ela me relatava as receitas e eu comentava com ela: Vovó, essas comidas eram muito interessantes! E o vinagre antigo, de vinagreira e casca de banana era tão perfumado, maravilhoso. Você não tem saudade desse tempo? E ela respondia: Eu não, minha filha. Eu gosto é do vinagre que já vem pronto, é ótimo. As panelas de cerâmica quebravam muito, eram muito fracas, davam trabalho p'ra lavar. Eu gosto é de agora, naquela época a gente trabalhava muito. Tudo era difícil para as mulheres. E aí, eu via, apesar do meu saudosismo de pesquisadora e da minha tentativa de resgatar essa tradição, que minha avó era uma mulher muito atual. O passado tinha sido também muito trabalhoso e difícil para as mulheres de sua época.

Cozinhava muito bem,  com muito tempero, e  a tradição perpassava as fibras e os tipos de pratos e alimentos, mas agora feitos  na atualidade, com recursos diferentes e menos trabalho.

Nos seus 100 anos, ainda que ela não perceba bem o que está acontecendo, está sendo homenageada.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda -16.08.2008

Clique aqui para ver sua biografia feita nos 90 anos, em 1998.


Midi de fundo: Lua Branca de Chiquinha Gonzaga - 1911

Foto por Verônica Maria Mapurunga de Miranda - Agosto de 2006

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