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Maçã, a Fruta do Conhecimento

 Quando eu era criança, em minha terra natal não havia chegado ainda a maçã. Fruta de clima frio, em época de integração econômica e comunicações incipientes, nas cidades do interior nordestino a maçã não chegava. Em Viçosa, cidade serrana, havia mangas de tipos variados, bananas, laranjas, tangerinas, abacaxis, goiabas, cajás, seriguelas, cajaranas, sapotis, graviolas, atas, abricós e uma quantidade grande de frutas silvestres, mas maçã não havia.

E isso não seria nenhum problema se a maçã, esse fruto desconhecido e até proibido pela Bíblia, não estivesse em nosso imaginário. Quando aprendíamos a ler, no colégio, a letra M sempre era a inicial de maçã, desenhávamos e pintávamos a maçã, ouvíamos contos de fadas onde as frutas sempre citadas eram, via de regra, maçãs. Aos domingos, no cine-teatro D. Pedro II assistíamos aos filmes de Branca de Neve e mais uma vez lá estava a maçã. Líamos revistas de Walt Disney e o que havia de mais saboroso era a torta de natal feita pela vovó Donalda... De maçã.

Nosso imaginário era povoado pela maçã, essa fruta desconhecida e desejada, até na hora do catecismo, quando na história sagrada a maçã era a fruta do conhecimento a que nós, reles mortais, não teríamos direito. Ainda mais se fôssemos de Viçosa do Ceará, já que lá não havia maçã de forma nenhuma. Lamentava profundamente e pensava que  jamais teria acesso a isso.

Imaginava-me como Américo Pisca-Pisca das fábulas de La Fontaine fazendo a reforma da natureza e perguntava-me: por que a serpente não deu à Eva uma graviola, um sapoti ou uma goiaba? Seria mais plausível qualquer tentativa de transgressão. Poderia pensar, um dia, sobre esse difícil e delicado caminho feito por Eva e Adão. Sem maçã, jamais poderia me aventurar por esses tortuosos e difíceis caminhos...

E assim vivíamos, com muitas frutas regionais e desejos sufocados de conhecer e provar a maçã. Até que um belo dia chegou em Viçosa um norte-americano com direitos de explorar o cobre da  Mina da Pedra Verde em nosso município. Na bagagem muita coragem e vontade de um pioneiro...e novidades também. Tratou de se relacionar bem com a comunidade local, e logo que começaram os primeiros resultados de sua exploração, ele resolveu fazer um grande almoço de congraçamento com vários convidados da cidade, que deveriam descer pela perigosa (na época) ladeira que dava acesso à Mina da Pedra Verde.

Meus pais haviam sido convidados pessoalmente por Mr. Jack, como se chamava o americano, e não poderiam deixar de ir ao evento, apesar de terem que tomar várias medidas antes de sair de casa. Não poderiam levar os filhos, já que a estrada era perigosa, e minha mãe não queria se ausentar por um dia dos cuidados maternos com seus pimpolhos. Uma prima tranqüilizou minha mãe, oferecendo-se para passar aquele domingo com meus irmãos e eu. Passamos toda a tarde ouvindo estórias de santos, contadas por minha prima que tinha um grande repertório delas.

Esperávamos ansiosos a chegada de meus pais, com as novidades. Quase anoitecendo eles chegaram, por fim. Minha mãe tinha um rosto de quem trazia grandes novidades. Riu e acenou com algo na mão, logo que desceu do carro. Nossos olhos não acreditavam. Algo que nós havíamos visto em desenhos, fotografias, filmes e que estava em nossas cabeças. Como não saber o que era aquilo que ela trazia. Nada mais e nada menos do que uma maçã. Dissemos todos ao mesmo tempo: Maçã!!!

Uma...apenas umazinha minha mãe teve coragem de levar para nós, envergonhada de pegar mais, apesar de Mr. Jack ter levado para o almoço de congraçamento, uma grande quantidade delas.

Se Mr. Jack não percebeu, ele foi, na verdade, o introdutor da maçã em Viçosa do Ceará. Responsável pelo gozo ou decepção de muitos Viçosenses que nunca imaginaram provar da maçã, daquela forma insuspeitada.

Eu, fui uma dessas pessoas. Queria a maçã só para mim. Minha mãe disse: não, tenho que dividi-la com todos. Ficava muito pouco para cada um, mas enfim, finalmente provaríamos desse fruto proibido.

A maçã foi dividida como em um ritual. Eu e meus irmãos, em torno da mesa, esperávamos ansiosos, enquanto minha mãe lentamente a descascava. Cortou-a em fatias e as distribuiu. Levei-a a boca com a imaginação transbordando de gozo, da espera, enfim o acesso ao fruto proibido.O que poderia acontecer daquele momento em diante? Cerrei os olhos e me entreguei àquele momento.

Momento, aliás, decepcionante. A maçã tinha um gosto áspero, sentia que faltava suco. Minhas ilusões caíram por terra. Aquela fruta não poderia ser assim. Deveria me levar aos céus. Toda espera, todos os sonhos para que? Para ter uma fruta que não era melhor, até pelo contrário, das frutas que eu já conhecia e consumia.

Passei um tempo decepcionada com aquela experiência. E tentei esquecê-la. Passei a não investir mais em tudo aquilo que por tempos meu imaginário criara sobre a maçã. Depois, em Viçosa mesmo e em outros lugares, tive oportunidade de provar vários outros tipos de maçã (verde, golden) e preparadas das mais diversas formas. Mas nunca consegui resolver completamente esse trauma.

Depois de adulta e de ter descoberto o prazer da arte culinária, consegui um feito. Aprendi a fazer uma torta de maçã, que me lembrava de perto a torta da vovó Donalda. Reconciliei-me, de certa forma, com a maçã. Hoje todos que comem da torta de maçã que eu faço a aprovam com louvor.

Moral da história: muitas vezes, o fruto, até mesmo o fruto do conhecimento, não pode ser comido cru. É necessário que o elaboremos e façamos dele uma deliciosa torta.

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Se você também tem traumas de maçã e ainda não encontrou a receita de torta adequada. Tente esta...

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 12/março/2000

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