TRANSITANDO EM NOVOS PARADIGMAS

----------------------------------------------------------------

Tecendo- As mãos e as autoexpressões -   CLIQUE PARA VER MAIS ARQUIVOS



 

Não sou uma tricoteira profissional, sou até muito amadora, mas sigo os conselhos das "abuelas" (avós) ancestrais  do continente americano e Abya Yala: Quando sentir dor é melhor tecer. A sabedoria desse dito reside no fato de que as mãos têm uma conexão grande com o coração. E isso é uma forma de nos conectar com esse centro de gravidade e processador de energias. Falo de coração como esse centro que envolve um raio de três ou mais chacras (manipura (plexo solar), chacra cardíaco e o chacra da garganta) e  que pode ser ativado com essas atividades, bem como com meditação.  E o próprio ritmo da atividade tecedora também ajuda a nos retirar da mente ordinária e barulhenta. As emoções e os sentimentos podem ser melhor assimilados e até clarificados quando fazemos trabalhos manuais como tecer e outros. E aí não estou falando necessariamente de arte, que traz o símbolo, apesar de esta ser de grande importância, mas de expressões e auto-expressões tão necessárias ao ser humano moderno. Nos acostumamos a ser o vaso que recebe educação, informação e otras cositas más, esquecendo que temos muito para expressar, atuar, conectar e existe uma gama grande de auto-expressões possíveis, além do falar e escrever. Relembremos Sócrates e sua maiêutica, que era seu método de fazer o ser humano retirar de dentro de si mesmo toda a sabedoria que necessitava para viver. Nossa cultura e "educação bancária", que tudo recebe, retiraram a possibilidade da auto-expressão, da doação ou dádiva. Quando conseguimos nos auto-expressar verdadeiramente nos tornamos dadivosos, como a natureza.

Em um dia desses fazia minha pequena tricotagem e um rapaz se aproximou e disse: Você sabe tricotar bem? Eu disse: Não, tricoto como amadora e nem sempre. E ele falou: Ando procurando uma pessoa que me ensine a tricotar, porque sou hiperativo e de dia eu faço artesanatos, mas à noite enquanto assisto tv minhas mãos ficam se movendo e eu sinto que preciso aprender a tecer, a tricotar para essas horas. Bem, essa era uma atividade considerada feminina até algum tempo atrás, mas atualmente homens já se aventuraram também nela. Li um artigo sobre a educação na Suécia, em que as atividades manuais são ensinadas de forma igual, no ensino regular, para meninos e meninas e dentre elas costurar, tecer, bordar, tricotar, cozinhar, como algo que é parte da vida e  sobrevivência. Essa forma de colocar essas atividades que se conectam com o coração entre as atividades importantes do dia-a-dia questiona a divisão social do trabalho (trabalho intelectual x trabalho manual; trabalho doméstico x trabalho da esfera pública) e divisão entre cabeça e coração.

Esse centro de gravidade que é o coração questiona profundamente a hierarquia vertical da sociedade e cultura patriarcal, tornando possível  a hierarquia entrelaçada e o encontro do masculino e feminino. Além disso, essas atividades manuais que não exigem um talento especial, mas incluem uma aprendizagem têm sido utilizadas em lugares onde se realiza arte-terapia como recursos de autoconhecimento e auto-expressão. O bordado que conta a própria trajetória de vida ou expressa aqueles sentimentos e até sofrimentos que não se pode expressar em outro lugar. Essas atividades que são também criativas e que também têm sido utilizadas como fonte de renda para muitos é também essa fonte que pode servir de mediação para conflitos pessoais e para que as pessoas possam ir entrando em uma conexão com o coração, diminuindo assim as pressões criadas pelas polarizações, ambivalências geradas pelos processos de mudanças em que todos estamos submetidos, querendo ou não.

 

Há um tempo atrás escrevi um artigo, colocando algumas práticas que existiam na pequena cidade de Viçosa do Ceará e outras cidades pequenas, em que as pessoas que possuíam algumas atividades rurais, como a debulha do feijão que recebiam de seus sítios e que era uma atividade em que as pessoas se juntavam na vizinhança para fazê-las. As debulhas eram realizadas de forma cooperativa e nesse ato as pessoas contavam histórias da cidade, das famílias, das tradições e tanta coisa mais, que era um momento importante de se fazer exercer uma relação de cooperação, que envolvia sentimentos, emoções, alegria e acabava sendo uma terapia para todos enquanto era ao mesmo tempo parte do cotidiano. E isso ajudava as pessoas a relaxarem, a se conectarem com suas raízes, tradições, brincadeiras e a reforçarem os laços de amizade, vizinhança e solidariedade. E assim escapavam também de muitas neuroses. (Vide:DAS TRADIÇÕES E HISTÓRIAS: O FEIJÃO NOSSO DE CADA DIA-http://www.veronicammiranda.com.br/faceblog36.htm).

Para quem não sabe, se você lida, por exemplo com culinária e com plantios, cuidado de plantas, você pode estar lidando com sua função sensação, percepção ou gerando equilíbrio entre corpo e mente, porque essas atividades, além de criativas e de relação com a natureza, são também atividades que aterram, ou seja, compensam as atividades do pensamento e intuição. Nós somos essa complexidade e estamos sempre correndo o risco de unilateralidade da consciência, na civilização moderna, por termos atividades que sempre valorizam mais aquilo que dá lucro e que se localizam na cabeça, na mente e constituem carreiras na esfera pública, considerando a divisão social do trabalho.

A especialização do trabalho na vida moderna e a fragmentação das atividades, colocando-as como trabalhos manuais e intelectuais decorrente do estilo de vida moderna e a realização somente de partes de um produto (na fábrica cada trabalhador ou operário faz uma peça de um automóvel, por exemplo, mas não têm  controle ou acesso ao produto completo. A crítica dessa fragmentação é muito clara no filme Tempos Modernos de Charles Chaplin em que o operário praticamente enlouquece e sai apertando parafuso pelas ruas, em tudo e em todos) causaram muitos distúrbios psicossomáticos e a desvalorização daquilo que chamamos trabalho manual, um trabalho em geral menos remunerado e realizado por trabalhadores menos qualificados.

É digno de nota que atualmente existem algumas atividades profissionais altamente especializadas e bem remuneradas, mas que são bastante fragmentadas e que levam as pessoas a ficarem naquela alienação e fragmentação.   Na cultura brasileira e da América do Sul o trabalho manual ainda teve o agravante de ser relacionado com a escravidão e, portanto, ser considerado um trabalho socialmente menor e até indigno. Outro dia, ouvi de uma psicóloga que estava fazendo alguns trabalhos manuais de um curso de arteterapia dizer que para ela era difícil realizar esse trabalho manual porque se sentia perdendo tempo. A história de perder tempo na sociedade capitalista, onde tempo é dinheiro e as atividades manuais não dão a mesma remuneração e nem o mesmo status social que outras mais tecnológicas ou com formação universitária, mostra que para realizar as atividades que nos conectam com o coração e com o corpo é necessário sair de uma dada posição egóica e unilateral da cultura, do sistema patriarcal e capitalista. É necessário se "desarrumar", ter coragem de ir a contrapelo do sistema e da cultura dominante e criar novas disposições para sentir e se conectar com o coração. Essa é a única forma de questionamento sério e radical ao capitalismo e tem que ser realizado a partir de dentro, porque o sistema capitalista, assim como o sistema patriarcal estão internalizados.

Assim, o mero ato de tricotar significa um ato revolucionário, considerando a conjuntura de mudanças que se anuncia, porque  nossas atividades dominantes foram sempre mentais e intelectuais. Temos que entender de uma vez por todas, que qualquer revolução possível atualmente tem que ser feita a partir "de dentro", como já anunciava Bauman. E ela não pode deixar de lado esse centro de convergência e confluência que é o coração e as formas de conseguirmos nos conectar com ele.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda- 08.09.2023

-------------------------------------------------------------------------------------

Nota1: Nos tornar dadivosos como a natureza não se refere necessariamente a doações materiais. Algumas pessoas só conseguem pensar no TER e não no SER. Mas ser dadivoso é dar aquilo que é do seu Ser e que às vezes é algo intangível, mas que muitos podem usufruir. Uma flor dá o seu perfume, mas se alguém não sabe usufruí-lo, não o terá. Se a flor for destruída, pisoteada, você não poderá ter aquilo que a natureza lhe doou. Como diz Cora Coralina para ser dadivoso alguém...

 "MUITAS VEZES BASTA SER:
"COLO QUE ACOLHE
BRAÇO QUE ENVOLVE
PALAVRA QUE CONFORTA
SILENCIO QUE RESPEITA
ALEGRIA QUE CONTAGIA
LÁGRIMA QUE CORRE,
OLHAR QUE ACARICIA,
DESEJO QUE SACIA,
AMOR. QUE PROMOVE.
E ISSO NÃO É COISA DE OUTRO MUNDO,
É O QUE DÁ SENTIDO À VIDA." (CORA CORALINA, da Poesia NĀO SEI..)

Nota 2:

 Vi um vídeo sobre as diferenças em um relacionamento amoroso e eu ri bastante com esse vídeo. Mas no fundo desse e outros vídeos sobre esse assunto e sobre as diferenças, que estão em campos de opostos, tem sempre uma mensagem: Não conseguimos resolver as diferenças, em qualquer relação, sem sabedoria, sem amor, sem o poder espiritual e dadivoso. E por isso o centro do coração é tão importante. Não precisamos ser abelhas ou moscas (que têm o seu sentido de existência) mas seres humanos com possibilidades de expansão da consciência. O complexo oppositorum só integramos com coincidentia oppositorum para encontrar harmonia e plenitude. Em última instância estamos aqui para isso, para expandir a consciência nessa direção. E quando temos consciência real disso não aceitamos ser menos do que somos e procuramos cuidar de nossas integridades pessoais e tarefas próprias.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda. 13.09.2023.

 

 


  VOLTAR PARA ARTE E CRIATIVIDADE TECENDO VIDA

-------------------------------------------------------------------------------------------------

TECENDO, foto por Verônica Maria Mapurunga de Miranda.13.09.2023



 

ARTESANIAS - DE VERÔNICA MIRANDA-www.veronicammiranda.com.br

A REPRODUÇÃO  TOTAL OU PARCIAL DESTE SÍTIO NÃO ESTÁ PERMITIDA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS