TRANSITANDO EM NOVOS PARADIGMAS

11- INDIVIDUAÇÃO: DO CONHECIMENTO, DA SOMBRA E DA UNILATERALIDADE DA CONSCIÊNCIA (VEJA ARQUIVOS)

Enquanto pensava sobre esse tema que considero crucial nos dias atuais e que se relaciona com os processos de individuação e da unilateralidade da consciência do ser humano ocidental e moderno me vieram essas duas questões: A reverência ao conhecimento e o respeito às diferenças culturais que têm suas próprias formas de buscar a ampliação da consciência necessária aos humanos nos dias atuais.

"(...)Ser reverente com o conhecimento que transforma e amplia a consciência é ser também capaz de questionar as crenças, preconceitos e dogmas de religiões e da ciência moderna, que resistem à essas mudanças e que possuem ainda uma visão e perspectiva unilaterais da consciência. Estamos em época de transformações claras e urgentes e isso necessita ser enfrentado. (...)" (Do artigo:Reverência escrito nesta seção Jung Para a Vida que discorre sobre a atitude sem preconceitos, respeitosa com as outras culturas e religiões, com as diferenças culturais e com um acompanhamento rigoroso e difícil dos casos de individuação considerando que isso era realizado no âmbito de uma ciência muito positivista e cartesiana e que a individuação era algo que ocorria com os seres humanos da cultura ocidental moderna, ocasionada pela unilateralidade da consciência e dentro de um dado período histórico em que ocorre uma especialização da cultura. A individuação ainda que alguém duvide, não é algo "inventado" por ninguém, mas ocorrido com um grande número de pessoas em um processo natural em que a própria consciência (consciência maior ou Self) tenta restabelecer o psiquismo para uma consciência mais ampliada ou personalidade total, dirigindo-a para um novo eixo, ou um terceiro ponto de vista entre consciente (ego) e inconsciente.

Não se pode querer que pessoas ligadas a uma outra cultura, com outro tipo de consciência não unilateralizada e em que não haja esses problemas da sociedade ocidental moderna entenda do assunto. Mas, é muito bom saber que há pessoas de outras culturas capazes de respeitar e ser reverentes com o conhecimento de culturas diferentes. Assisti outro dia um vídeo de um líder de povos originários Ashaninka em um colóquio internacional colocar que ele não estava ali para dizer que sua cultura era mais sábia do que as outras, porque tinha aprendido com os mestres de seu povo que todo ser humano tem sabedoria, apenas os conhecimentos e a forma de colocar essa sabedoria eram diferentes entre as culturas. E passou a discorrer sobre os conhecimentos da natureza que eles tinham, a importância de sua cultura e como corriam riscos de serem invadidos e de extinção do seu povo. O que percebi mais interessante é que ele não precisou dizer e nem buscar nenhum doutorado, nem PhD entre o seu povo para validar conhecimentos e culturas, como é feito nas sociedades e culturas ocidentais. Na sua cultura esses parâmetros não têm importância. E é digno e mostra que quando alguém tem o equilíbrio necessário, não precisa se inflacionar se sentindo superior, nem se sentir inferior buscando sempre validação para aquilo que traz para o mundo e para seu povo, porque sabe sua importância e seu valor. Sabemos o quanto os processos de colonização, as cultura hegemônicas, acabaram gerando enormes contradições, reações e até a criação de opressores internos que desvalorizam conhecimentos que são importantes e fundamentais para todos, por não se encaixarem em um conhecimento hegemônico ou cientifico. Aqueles conhecimentos novos, que chegam para ampliar consciências são primeiramente questionados por quem defende o status quo e o triste é que são questionados também, muitas vezes, por aqueles que precisam validar conhecimentos que só eles possuem. Apesar disso, existe uma diversidade grande  de conhecimentos e a abertura e o respeito com todos permite a troca, a aprendizagem e a harmonia, em vez de alguém querer saber que é o melhor e que o outro conhecimento é uma "invenção" porque não foi entendido ou não passou pelo seu crivo cultural.

Quando sabemos disso respeitamos os processos dos outros, os conhecimentos que eles trazem, que são muitas vezes resultados de duros e difíceis processos humanos e que assim como outros conhecimentos acumulados deverão servir a outros humanos em seus próprios processos. Aquilo que não serve para uns serve para outros. ´Da mesma forma assistimos as acusações sobre o vencimento e validade de conhecimentos (que são datados ou estão superados). Os conhecimentos nunca são completamente datados, se considerarmos que eles não são lineares e por isso sempre estamos voltando a eles nas voltas porque passam as civilizações, a história e a própria consciência humana.

Aquilo que não nos servia há um século atrás pode estar novamente na ordem das necessidades, para a reconstrução de outras realidades, assim como as ancestralidades e os rizomas, principalmente quando uma civilização está sendo destruída, está sendo questionada por não responder mais às necessidades de vida atuais.  Duas questões dos estudos, pesquisas e experiências de Jung sobressaem nestes tempos, pelas necessidades de mudanças, integração e ampliação da consciência. Uma delas é a sombra ou aquilo que se tornou inconsciente pela unilateralidade dessa consciência  e que emerge e ameaça todos aqueles e as coletividades que não ousarem confrontá-la, conhecerem e integrá-la. A integração dos opostos e sua transcendência não pode ser realizada sem o conhecimento e os acordos devidos com o arquétipo da sombra. As riquezas, os dons,  os talentos, as qualidades psíquicas e espirituais só são conhecidas  à medida em que ampliamos a consciência através dessa integração. Quando um processo natural de individuação começa a ocorrer com a enantiodromia (vide artigos anteriores) diferentemente do que alguém disse, que a pessoa fica cara à cara com sua própria sombra, de fato é a sombra que fica cara a cara com ela. Não há como fugir. E por isso se sabe que não é algo "inventado" porque o processo não é iniciado de forma voluntária, mas pelo SELF, que reorganiza seu sistema energético, energizando e desenergizando as principais funções (pensamento, sentimento, intuição e sensação ou percepção) de forma que a pessoa vai seguindo todas as etapas necessárias para a recomposição da psique em outro patamar, resgatando o inconsciente e girando em torno do self e em diálogo ego-self. Sobre a importância do reconhecimento da sombra escrevi um pequeno artigo em meu facebook e o recoloco aqui:

"Nós podemos ter luz e iluminar? Sim. Desde que não esqueçamos que a luz sempre projetará uma sombra, ou a mostrará. Quanto mais luz, mais sombra. Nós não conseguimos viver sem sombra no planetinha azul, mas é possível buscar a transcendência dessa sombra e o reconhecimento permanente de que somos tudo, inclusive a sombra. Quando queremos viver somente na luz temos que saber onde estamos projetando nossa sombra. No conceito de Jung, o arquétipo da sombra é tudo aquilo que está inconsciente, e portanto, também um mar imenso de possibilidades, daquilo que não foi experimentado, desenvolvido, inclusive de talentos. E daí não devemos temer a sombra e nem recalcá-la. Quanto mais temos ciência de nossa sombra seremos também mais saudáveis. Quando não queremos reconhecer em nós a sombra, acabamos projetando-a em alguém.

Jung dizia que para ser santo alguém tinha que buscar outro ou outros para colocar sua sombra. E contava um episódio de um homem que ele conheceu e que não acreditava como alguém podia ser tão perfeito, simpático, maravilhoso, alguém inacreditável. E ele se perguntou: Essa pessoa não tem sombra? É tão maravilhoso assim? Duas semanas depois recebeu em seu consultório a esposa dele. E ela estava em um estado lamentável psicologicamente. Jung, então, soube onde estava a sombra do homem, que ele já estava considerando sem sombra. Ela estava em sua mulher. E assim é. Em uma sociedade em que há assimetria de poder, o lugar de sombra é sempre daqueles que são dominados ou estão em uma situação de fragilidade. E ele pergunta: onde está a sombra dos pais? E responde: Nos filhos. Onde está a sombra dos professores? Nos alunos. Onde está a sombra dos gurus? Nos discípulos. Onde está a sombra dos médico e terapeutas? Nos pacientes. Em um país racista, onde está a sombra dos brancos? Nos negros, nos indígenas . Em uma sociedade machista onde está a sombra dos homens? Nas mulheres. Onde está a sombra do patrão? Nos empregados. E, claro, a sombra da qual não temos consciência pode ser projetada todo o tempo.

E daí se espera que quem se ilumine, ilumine primeiramente sua própria sombra, para que ela não vá para outros. (revisitando Jung & cia). Veronica Maria Mapurunga de Miranda. 05.07.2022

Trata-se de em um primeiro momento, se há acompanhamento terapêutico ou consciência do processo, de ir retirando as projeções  e derrubando as máscaras, que vão de máscaras pessoais a máscaras culturais, à medida que o processo se aprofunda. Há um processo de sincronicidades em que essas máscaras são projetadas, interatuadas e reconhecidas E isso permite também, à medida em que vai se resolvendo a tensão dos opostos em cada função e a resolução de complexos, que ocorra a diferenciação da cultura, dos seus condicionamentos e recuperação paulatina daquilo que é verdadeiramente da pessoa. Separar o joio do trigo, ou aquilo que pertence realmente à pessoa  ou é algo da cultura que foi imposto pelo processo de educação e formação.
 

A unilateralidade da consciência se dá pelo fato do ego estar identificado somente com uma das funções básicas, função principal (e ter em grande parte das vezes uma função auxiliar). E as vezes essa mesma função que é a principal por vários motivos, seja por questões emocionais, seja por questões educativas e de desenvolvimento insuficiente da personalidade, falta de estímulos, ela pode não ser bem diferenciada. E nesse caso é necessário trabalhar também essa função, que é a função consciente, mas não está diferenciada. As outras funções estão inconscientes ou na Sombra.Tudo começa com a insatisfação daquilo que se faz e daquilo que se vive. Conheci uma professora universitária, que tinha feito sua carreira, com todas as pós-graduações necessárias, títulos, anos de profissão e reconhecimento, e no entanto, em um dado dia começou a se sentir muito insatisfeita. E uma vez em uma reunião social me disse: Eu me sinto muito mal por pensar que a única coisa que eu sei fazer é dar aulas e pesquisar. Não sei fazer outra coisa. O problema é que tudo isso tinha ficado insuficiente e ela não se sentia realizada, aparentemente buscava algo mais. E assim começa o processo que busca sair  da unilateralidade da consciência. O que muitas pessoas não sabem é que sair e buscar outra atividade diferente, que está relacionada com outra função psicológica, pode ser o começo de uma revolução pessoal, se a vida toda alguém só realizou atividades de uma função psicológica, de forma unilateralizada.  E esses processos podem ser mais leves ou mais profundos e ocorrem em geral na metanóia. Um processo iniciado, diferenciando as várias funções, como foi o processo de Jung, é como um processo de várias mortes e renascimentos, porque há um deslocamento da consciência para outra função até ela se diferenciar, desenvolver e organizar. 

Tem sido observado, até mesmo pelas comunidades de povos originários, que em algumas escolas a forma condicionada de educação começou a trazer problemas e modificações culturais nas crianças, afetando a saúde, os sonhos e adoecendo até mesmo a professora. Isso mostra como a cultura e educação unilateralizam as pessoas e tornam o seu desenvolvimento pessoal, de sua personalidade, insuficiente e fragmentado causando mais adiante as necessidades de individuação, que ao contrário do que se pensa não busca a separatividade e individualização, mas a integralidade e conexão.

Outro aspecto importante é a falta de conexão real com a natureza e com os outros seres humanos. Boa parte do processo de Jung voltou-se para a natureza, reconquistada a partir de dentro, de forma alquímica e dentro de uma percepção cósmica, dando conta dessas necessidades no ser humano moderno.

A via simbólica e os arquétipos são fundamentais em todo esse percurso,  porque os opostos que entram em permanente tensão só se reúnem ou chegam a acordos, através dos símbolos e atividades simbólicas, que podem emergir naturalmente ou podem ser estimulados como fazia Jung e os terapeutas junguianos através de sonhos, de imaginação ativa, arteterapia ou expressões criativas, além de outras ferramentas que existem hoje.

Uma educação e estilo de vida diferentes em que se veja o desenvolvimento integral da criança e no qual um adulto não tenha que viver de forma tão especializada na sociedade e cultura, em que a realização pessoal em vários sentidos seja possível, com maior conexão com a natureza, não necessitará do processo de individuação.

O encontro de culturas, indo de mãos dadas, sem preconceitos, competições, beligerâncias com trocas e aprendizagens de lado a lado formarão uma cultura mais viva, mais diversa, possibilitando maior integração interna para todos e trará também  novas possibilidades de consciência.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda- 26.07.2022 (Pela Comemoração do Aniversário de Jung).

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Bibliografia sobre individuação:

1- Jung Carl Gustav - O homem e Seus Símbolos - Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira. Edição Especial Brasileira .

2- Jung Carl Gustav - Aion - Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis, RJ: Vozes, 5ª edição, 1998.

3 - Jung Carl Gustav  -Tipos Psicológicos- OBRAS COMPLETAS DE C.G. JUNG VOLUME VI - Petrópolis. RJ: Vozes, 1991

4- Jung Carl Gustav - O Eu e o inconsciente- Petrópolis, RJ: Vozes, 1987

5- Jung , Carl Gustav - Psicologia e Alquimia- Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.

6- Jung , Carl Gustav - Psicologia do Inconsciente - Petrópolis, Vozes, 1980

7- Jung, Carl Gustav - Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo - Petrópolis, RJ:Vozes, 2000.

8- Jung, Carl Gustav - Estudos Alquímicos - Petrópolis, RJ:Vozes, 2003

9- Marie Louise Von Franz - Psicoterapia - São Paulo, Paulus, Coleção Amor e Psique,3ª edição, 2011

10 - Maroni, Amnéris - Figuras da Imaginação - Buscando compreender a psique. São Paulo: Summus, 2001


Fotomontagem por Verônica Maria Mapurunga de Miranda

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