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***Cronicando***


Serrista

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Quando o conheci ele já tinha os cabelos brancos, como nuvens. Sentado em sua cadeira de balanço, lendo o jornal, fazia seus comentários: das notícias, das novidades dos tempos modernos, das dificuldades do cotidiano. Comentários sempre mesclados com suas reminiscências de outros tempos.

Aposentado do antigo IFOCS, depois DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas), conhecia muito do interior do Ceará, de suas viagens e estadias como fiscal de açudes. Em um desses trabalhos conhecera sua esposa com quem chegou a comemorar suas bodas de ouro no local onde se conheceram, sentados no sofá de palhinha onde namoravam.   

   Muitas estórias, muitos ditos, palavras de um dicionário regional já quase esquecido. Uma ironia fina, mas nem por isso pouco simpática, fazia rir quando dizia: Quem come do meu pirão prova do meu cinturão.Ou quando alguém se referia a alguma autoridade sem os devidos dr. e srs, ele falava: Você parece que jogou peteca com ele.

Todos os dias tinha os mesmos hábitos: Ia ao mercado, à praça do Ferreira conversar com amigos, comprava na caderneta como antigamente, freqüentava a padaria mais antiga da cidade, que tinha o melhor  e mais tradicional pão. Conhecia as ruas pelos seus nomes antigos, rua formosa, rua do ouvidor...

   Com ele poder-se-ia conversar horas sobre o Ceará de outros tempos. Na memória de suas viagens as dificuldades das comunicações e dos transportes. Para ir à Granja onde tinha parentes e trabalhos a realizar ele tinha que tomar um vapor até Acaraú, de lá o trem até Camocim e ir penando pelas estradas carroçáveis, com o tipo de transporte que conseguia até Granja.

 Contava dos modismos, das dificuldades, dos levantes dos trabalhadores nas  frentes de trabalho na época das secas, dos bondes de Fortaleza, da cidade antiga, dos trilhos e dos trens.  Paisagens que se descortinavam numa viagem no tempo enquanto conversava. Com o tempo as estórias tornavam-se repetitivas, a necessidade talvez de fixar na memória o que a inexorabilidade do tempo, das transformações apagavam sem deixar rastros.

Ocupava parte do dia de uma forma simpática e reparadora. Em uma escrivaninha antiga guardava, em profusão, ferramentas, parafusos, peças, sempre prontas a serem aproveitadas e reaproveitadas em um esmerado conserto. Ali tinha sempre uma solução para algo quebrado e que não funcionava.

Quando fui apresentada a ele senti que caía em suas boas graças quando ele me colocou um apelido. Retirado de uma das suas tantas estórias pitorescas, a lembrar que eu havia nascido na Serra Grande, como chamava  a Serra da Ibiapaba. Repetia sempre essa estória para que eu não a esquecesse. Eu entendia isso como um destaque, uma deferência, uma repetição de gentileza e carinho. Ali estava eu na escuta quando ele fazia questão de repetir a  seguinte estória.

Até a década de trinta desse século que findou, e até um pouco depois, com as difíceis comunicações entre capital e interior do Estado e a incipiência da economia, muitos produtos agrícolas eram comercializados através de trocas entre as várias regiões. Havia os entrepostos de trocas dos produtos onde se trocava farinha e feijão do sertão por rapadura e café da serra, milho por frutas e tantos outros.

Contava essa estória com uma certa graça e um certo suspense, e imitando a forma de falar dos personagens. Os comboieiros chegaram num lugarejo na região norte do Estado e traziam alguns produtos para trocar com a rapadura da Serra Grande. Nessas trocas todo cuidado era necessário. Rapadura como a da Serra Grande não tinha outra igual. Era necessário, entretanto, cuidado para não comprar gato por lebre. Era importante ser um bom conhecedor de rapaduras.

Nosso contador da estória nesse ponto começava a rir. Contava os trejeitos do comboieiro, a mostrar sapiência no ofício, a se fazer de esperto. Depois de muita lengalenga e de convencer aos demais que entendia do assunto, o comboieiro falou: Coloca essa rapadura aí no balcão que eu quero fazer um teste, quero saber se ela é legítima.

O outro comboieiro colocou uma rapadura sobre o balcão. O expert aproximou-se, fechou a mão sobre a rapadura, calculou, e passou um risco com a unha do polegar, lado a lado da rapadura, deixando um sulco. Exclamou finalmente, com um ar de aprovação: Serrista!!!

De longe, ainda ouço suas risadas...

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Ele se foi... Desta para melhor. Ficou no coração de uma Serrista

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Verônica Maria Mapurunga de Miranda

17/12/2000


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