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***Cronicando***

O Réu

Em meados da década de 80, desse século passante e ultrapassante, estava eu com uma equipe pesquisando em um  projeto de colonização do INCRA. Área antiga de posseiros e pescadores do litoral cearense, onde se estabeleceu um conflito com grileiros (dentre eles algumas empresas), que tentaram se apossar de áreas ocupadas há várias décadas pelos posseiros, através do registro ilegal das mesmas. A questão acabou derivando para um conflito de grandes proporções ocorrendo uma morte. Na área desapropriada por interesse social, pelo INCRA, passou a ser organizado o assentamento dos antigos posseiros da área. 

Fazia, com uma equipe, uma pesquisa de avaliação do assentamento, na qual além da compreensão das formas de ocupação e acesso à terra, da economia pesqueira a que se dedicavam antes da desapropriação, as histórias de vida  e reconto do conflito eram fundamentais para a compreensão de toda a teia de relações aí existentes. 

A área toda desapropriada era plantada de cajueiros antigos, de onde colhiam e comercializavam a castanha. Tinham fabricação caseira de cajuína (deliciosa bebida feita do caju) e doces, e as mulheres belos trabalhos artesanais de renda e labirinto. Mas a principal referência de todos ali era sem dúvida o mar.

O mar, ponto de chegada e partida. Horizonte que se encontrava ao nascer do sol e se perdia com a descida das brumas noturnas. A lua, em algumas noites, fazia brilhar as velas dos barcos, ali mesmo por eles fabricados. Pescavam camarão, lagosta e pouco peixe. As ostras nas pedras, ao alcance da mão. A maresia entranhada nos narizes, nos poros...Parte deles. O vento e o marulhar das ondas como uma canção, convite permanente para estar ali, viver ali, só sair para o mar. 

Formou-se uma grande família durante décadas, crescendo assistida pelo mar e suas benesses, sob a orientação de um patriarca, que regulamentava a comunidade com sua sabedoria e como pai de todos. Preocupava-se com seus protegidos e cuidava de suas doenças. Leis para que as quero? Tinham as suas próprias. Não traíam  seus regulamentos, nem sua comunidade, nem seu patriarca que mediava e dirimia os conflitos. 

Terras de Deus, não registradas por descendentes de Pedro Álvares Cabral, não regularizadas pelas leis dos homens. Por estas leis eram sobras de terra, terras devolutas, que logo pela valorização imobiliária do litoral e vocação para a cajucultura começaram a ser invadidas. Não perguntaram há quanto tempo aqueles produtores e pescadores plantavam e cultivavam  aquela terra. Não quiseram saber, que por luas e luas afora eles eram inquilinos do mar. Que tinham suas casas   por anos  a fio respingadas pelas marés, iluminadas pelo sol e os olhos inundados de azul do mar. Tirar suas terras, tirar seu mar era como lhes tirar a vida. 

Estávamos em um alpendre de frente para o mar, a imensidão tomava conta de nós, o marulhar, música de fundo para aquela trágica estória do conflito e da incompreensão das suas leis, da sua comunidade e de sua paz. Leis eles tinham. Mas agora percebiam, não serviam para enfrentar aqueles que se colocaram como invasores perigosos. 

Já estava tudo em cartório registrado por empresas invasoras. Eles disseram ao juiz de direito da cidade: E os nossos direitos? Ele respondeu: Direitos? Vocês aqui não têm nenhum. Ficaram, então, sabendo que tinham que defender suas vidas com unhas e dentes. E prepararam-se para receber o invasor se preciso fosse. Começaram as guerras de cercas. Os invasores faziam cercas, eles as derrubavam. Um dia na calada da noite houve o confronto. Os invasores levaram capangas armados e ali houve tiros e resistência. Um dos tiros matou um dos invasores. Nunca se soube ao certo de onde saiu o tiro. Mas, apontaram um culpado - um pescador da comunidade.

Chamado pelo juiz, para prestar declaração, o acusado foi à cidade acompanhado pelos companheiros. Lá percebeu que nunca havia entrado em recinto tão formal, de uma lei tão implacável e pouco misericordiosa. Além disso, desconhecida. Que lei era essa, que concordava com invasores, deixava-os sem suas terras, sem o seu mar...Sem suas vidas? E ainda o cobrava por defender-se? Sentia-se um animal acuado, em uma floresta desconhecida. Lembrava de seu mar, tão imenso, tão infinito, tão poderoso, mas, que sabia, era sua casa. Conhecia e conversava com suas marés, seus ventos, sabia sua linguagem. Ali, mais uma vez, não tinha alternativa. Tinha que se defender.

 Seus pensamentos foram cortados pela voz do juiz, que disse:

Que se aproxime o réu.

Nessa hora do relato, no alpendre em frente ao mar, nosso contador da estória ofegava cansado e apreensivo ao dizer: (Fulano) não sabia o que diabo era réu, apavorado e pensando que era um nome feio, que o juiz o estava insultando respondeu-lhe:

Réu é você.

Não preciso dizer a você leitor, que entende dessas leis dos homens, que isso significou desacato à autoridade. E o ato decorrente disso foi a detenção do acusado. 

Ali, naquele alpendre, o narrador de tal estória já tinha relaxado. Agora tudo estava em paz, tudo tinha sido esclarecido, e suas terras tinham sido devolvidas. Ria, com um sorriso matreiro, de quem já estava ciente de leis que antes não conhecia, e de como tudo isso parecia absurdo e ilusão.

A imensidão do mar e o seu doce e poderoso marulhar ficaram, de repente, mais presentes. O  pescador olhava para o mar, com um sorriso aberto. Havia algo de permanente, de maravilhoso, de vida, que aquele pescador já sabia, e que nós estávamos percebendo, que ele  teria até o fim dos seus dias.

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Não ousaria fazer um julgamento das leis dos homens. Mas algo de tudo isso me fez refletir e concluir que: Todo juiz tem seu dia de réu. 

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda  04/junho/2000

Aqui você me encontrará sempre com o cotidiano, com o prosaico, com o divertidamente humano, com o essencial que está presente em nossos encontros e desencontros do dia-a-dia. Aqui você me encontrará cronicando. 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda 


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