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Contando um Conto

 

Pulando a Cerca

No início dos anos 90,  participando da realização de projeto para uma cooperativa de pequenos produtores rurais, eu e uma equipe tínhamos que realizar  in loco o planejamento de cada propriedade. Projetos complexos, que buscavam viabilizar a produção, com recursos escassos e que incluíam  novas relações de trabalho e novas formas de gerenciamento da propriedade e da  produção.

O gerenciamento e a reorganização do processo de trabalho não estavam dissociados da organização do espaço agrícola. A equipe técnica tinha que estar integrada o suficiente  para poder relacionarjuntamente com os produtores, todos os elementos que eram partes desse planejamento. Assim, eu trabalhando com gerenciamento e organização do trabalho e do espaço tinha que entender também de agricultura, assim como o agrônomo e técnico agrícola tinham que estar à par das relações de trabalho e da capacidade de gerenciamento.

E isso significava que além das conversas e entrevistas, tínhamos também, inclusive eu, que caminhar  pelas propriedades. E isso era muito bom. Cansativo nos primeiros dias, depois o corpo se acostumava, e para deleite dos produtores, que gostam de mostrar sua propriedade, andávamos com eles por todos os lugares. Identificávamos assim as melhores e mais adequadas áreas de plantio,  mediam-se as áreas, coletavam-se amostras de solo e água para análise, etc. Íamos preparados para o sol, com cantil  e outros apetrechos necessários, para enfrentar mato, garranchos, riachos, lama, ladeiras e muitas outras coisas inesperadas pelo caminho. Uma aventura.

 Além das muitas paisagens, aromas, recantos incríveis que a natureza nos oferece em trabalhos assim, existe ainda o contato com as pessoas do campo - os produtores e suas famílias - que é muito agradável, pela receptividade, brincadeiras, estórias e picardias tão próprias dessas pessoas.

 Em  uma visita dessas chegamos à propriedade de seo Carlitos. Brincalhão, contador de estórias, cheio de esperanças com sua propriedade. Queria ser um criador de gado. Levou-nos a conhecer sua propriedade. Grande parte era de uma grande secura. Precisava de água ou área de baixio, onde passasse água, para plantar e irrigar pasto, ou que fosse possível construir poços.

Nos levou a um baixio, mas a área não era suficiente para a forragem necessária ao gado. Pensou em outra, mas percebíamos que ele não queria mexer naquela  área. Era um tesouro. Algo que ele só utilizaria como último recurso. Conversa vai, conversa vem e percebendo-se sem outra saída resolveu lançar mão desse último recurso. Ia finalmente nos mostrar seu tesouro, sua última reserva.

Quando íamos saindo, ele olhou para mim e como se apercebesse de repente que eu era mulher, e apesar de eu já ter caminhado por quase toda a propriedade, me falou: Acho que não dá pra você ir, pois nós vamos ter que pular uma cerca. Eu olhei pra ele e disse: Qual é o problema, seo Carlitos? Pular a cerca faz bem pras pernas. Ele riu e, como não pudesse me impedir, fomos todos.

Depois de caminharmos um tempinho chegamos à cerca, que não foi de difícil ultrapassagem. Vimos uma baixa, verdinha, com um capinzal, que contrastava com o restante da paisagem seca. Lá longe havia um poço, onde poucos animais bebiam e se concentravam, pastando por perto. Os olhos de seo Carlitos brilhavam, quando nos mostrava aquilo que ele considerava seu tesouro, sua última reserva. Só havia um problema: além da distância  havia a cerca, que limitava seu terreno com  outras propriedades, e que ele não podia retirar de lá. Para chegar até lá, só pulando a cerca.

Voltamos para o alpendre de sua casa, para conversarmos,  buscar uma solução para o problema. Lá, sentado em uma rede-tucum balançando-se e sorrindo, olhava em minha direção e dizia: Ela é demais, pula até cerca! Todos riam maliciosamente.

Hoje, relembrando essas cenas, poderia dizer para seo Carlitos, que pular a cerca é fundamental. E além de fazer bem às pernas... Faz bem ao coração!

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Aos apressadinhos de plantão vou logo explicando, que esse pular a cerca não é igual à infidelidade.  Mas, para se fazer essa ultrapassagem, ou dar esse pulo, é necessário muita coragem, determinação e amor.

 

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 02/janeiro/ 2000 


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