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Contando um Conto

Uma obra de Arte

Na pequena cidade cearense onde morava todos já sabiam: Fazia bolos confeitados para aniversários como ninguém. Trabalho fino e delicado. Não porque  necessitasse, não cobrava pelos bolos. Fazia-os por diletantismo. Na maioria das vezes somente os materiais eram pagos, o bolo era o presente. 

A cada aniversário badalado sabia-se que ela teria uma encomenda, principalmente em festas de 15 anos. Seus dotes de confeiteira da melhor qualidade ninguém esquecia. Começava, então, um longo caminho até a obra estar completada. Primeiro havia uma conversa com a aniversariante ou responsável pela festa. A busca do significado daquela comemoração que teria no bolo a sua representação. Passava alguns dias pesquisando nos seus livros de arte culinária, pensando no significado maior do evento até parir a idéia.

Seus olhos brilhavam de satisfação, quando no segundo encontro trazia a idéia, segundo ela magnífica. Contava nos mínimos detalhes como seria o bolo...E o significado de tudo aquilo. Era único. Havia se baseado em um modelo visto em tal revista, mas colocara tantos outros detalhes que fora modificado quase que totalmente.

Logo, logo, avisava que estava com viagem marcada para a capital e ia aproveitar para comprar aquele papel necessário que só tinha em uma loja especializada, o açúcar mais fino e próprio que se fornecia em outra loja de artigos finos para confeitos. A armação do bolo necessitava de um material mais resistente, mas que não comprometesse a delicadeza do trabalho. A euforia subia-lhe pela cabeça.

Voltando de viagem com os materiais do bolo, ainda eufórica, seguia a primeira etapa do trabalho: Estrutura do bolo, enfeites outros que não eram o bolo mesmo, que só seria feito na véspera. Convidava a aniversariante para acompanhar o trabalho, para verificar o andamento, observar os detalhes e sentir o significado de tudo aquilo.

  Casada, mas com filho já crescido e morando em outra cidade, sua companhia de sempre era o marido ou poucas visitas de parentes. Caseira, ocupada com os afazeres domésticos, a realização dos bolos de aniversários eram os grandes momentos de trocas de idéias e a recuperação de tantas lembranças. Entre um enfeite e outro que mostrava à cliente, ia ao baú de recordações e trazia cartas antigas de quando namorava, poesias de seu marido, recitadas e gravadas em disco de cera. Fotografias  e álbuns antigos, com fotos do filho bebê, os momentos vividos em família, os pais e parentes que se foram. Seu rosto iluminava-se. Revivia suas alegrias, seus bons momentos.

Ao se aproximar a data do aniversário, entretanto, chegavam-lhe maus pressentimentos: E se chovesse e o glacê do bolo não endurecesse? E se o material que ela comprou não fosse realmente de boa qualidade e estragasse o bolo? E se ela adoecesse e não pudesse terminar sua obra prima? Quanto mais se aproximava o dia mais angustiada ficava. Na véspera, o bolo já quase pronto, mandava chamar a aniversariante. Queria que ela visse o bolo, como estava sendo terminado, se ela estava satisfeita com ele. Geralmente o bolo estava um primor, mas ela aproveitava para relatar sua via crucis.

 Chorara todo o dia anterior preocupada com o bolo, mas lembrava-se também de tantos e tantos momentos tristes. Sofria por todos eles. Junto com o glacê que demorava a endurecer pela chuva e umidade  vinham tantas contrariedades, mágoas que não se dissiparam em tantos anos. Acendera lampiões para colocar em volta do bolo e evitar que se desfizesse. O marido mais uma vez a repreendera: que necessidade ela tinha de fazer esses bolos, se eles sempre a faziam sofrer?

As lágrimas rolavam enquanto esperava uma palavra de consolo da aniversariante, que já compenetrada do significado de tudo aquilo, sabia que seu aniversário cumprira uma grande função. Agora já refeita e certa de que o bolo estava cumprindo a meta desejada despedia-se da aniversariante para fazer os últimos retoques, antes de mandar deixar o bolo completamente pronto.

À noite chegara o grande momento, pois havia um pequeno detalhe, ela fazia questão de acompanhar e verificar o desempenho de sua obra prima no aniversário. Chegava cedo à festa, postava-se em local de acesso aos convidados. E à medida que eles chegavam dizia: Você já viu o bolo? Se a resposta fosse não, levava pessoalmente o convidado para mostrá-lo. E dizia com um rosto iluminado de quem cumpriu uma grande tarefa: Mas não é lindo, mas não é uma obra de arte?!

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Seus bolos confeitados eram somente a expressão. Sua vida era a obra de arte.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda/31/03/2001

 


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