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Contando um Conto

Eu no inferno de Dante, sem Beatriz

Em um desses belos dias de sol, saindo a passear fui colhida por um pé de vento, que saiu a brincar comigo como uma fantasia rodopiante. O redemoinho parou em um lugar quente. E à medida que eu me fixava sobre as pernas  e tentava identificar o ambiente o calor aumentava. Uma náusea subia-me à cabeça. Gemidos, odores estranhos e variados. Pensei estar em um circo dos horrores até concluir finalmente  que estava no inferno.

Procurei pelo responsável de tal ambiente, que todos poderiam pensar que seria o satanás. Mas vi apenas uma mesa com um despachante.Sim, um despachante. O inferno também havia se burocratizado. Um homem verificava as listas dos novos visitantes do lugar tentando encontrar o lugar adequado para todos. Olhei bem e vi que ele era o Dante... Ele mesmo, o Dante Alighieri, da Divina Comédia.

Extremamente atarefado respondia às perguntas dos que chegavam, organizava listas, filas e encaminhava-os para seus lugares. O calor aumentava, chegava a sentir tonturas, sentia-me febril. Aproximei-me para ouvir as explicações. Um lado estava reservado para os guetos, os grupos da intolerância, explicava Dante. Dentre eles havia aqueles que apesar de discriminados não aprenderam e discriminavam também outros grupos. A ala dos corruptos e sem ética crescia a olhos vistos.A cada hora chegava mais gente.Todos rostos conhecidos dos jornais da tv. Dante explicava que essa área do inferno era toda só do Brasil.

A ala dos poderosos sem causa, aqueles do poder pelo poder eram obrigados a assistir um filme em um telão. O filme um tanto psicodélico lembrava as imagens de The Wall do Pink Floyd, mas com cenas e fundo musical brasileiros.

 Na primeira cena, árida e quente, a seca nordestina. Rostos desgrenhados de horror passeavam na tela em um grito que lembrava o grito de Munch. Uma seiva verde derramava-se pela estrada como se fosse sangue. Um pé de mandacaru  crescia na tela  com o fundo musical de Luís Gonzaga: "Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação".

Os rostos desesperados voltavam à tela, agora cantavam palavras em letras que desciam das bocas sedentas: "você tem fome de que? você tem sede de que? A gente não quer só comida, a gente quer comida e quer fazer amor/ a gente não quer só comida  a gente quer também aliviar a dor...A gente quer inteiro e não pela metade.. no fim apareciam os Titãs dançando e tocando com uma barulheira INFEEEERNAL.

A platéia toda com as mãos nos ouvidos e os rostos horrorizados, agonizando. De repente fortes odores subiram de toda a platéia. Cheiros de enxofre, alguns avinagrados, enjoativos,  outros almiscarados numa miscelânea de odores fortes e nauseantes. Dante explicava que eram os cheiros dos sentimentos - da indiferença, da raiva, dos rancores, das prepotências, da ânsia de poder. A platéia agonizava a pedir socorro, mas nenhum som era emitido de suas bocas. Como em um pesadelo estavam sem voz.

Sentia-me tonta e desviei o olhar para um aviso luminoso que piscava e dizia: O QUE ACONTECE DENTRO ACONTECE FORA. Lembrei-me de não ter visto pessoas mais próximas, da minha trajetória de vida, e se Dante teve sua própria lista na Divina Comédia eu também poderia ter a minha. Comecei a fazer a lista das pessoas que eu queria colocar lá, mas era tão grande que quando a entreguei a Dante ele a recusou e disse: "Não, diminua, porque hoje não temos muito espaço aqui e já tenho várias listas de novos corruptos e alguns políticos eminentes".

Fiquei desnorteada, não conseguia escolher alguns naquela lista. Pensei em Beatriz, a inspiração divina que ajudou Dante em sua trajetória entre inferno e céu. Mas eu estava sozinha, no inferno de Dante e sem Beatriz. Cheguei para Dante e agonizando com todo aquele calor, odores estranhos e som infernal, disse-lhe que não conseguia terminar aquela tarefa. Ele me respondeu: não tem importância, de qualquer forma todas as pessoas de sua lista cairão aqui nos próximos dias.

Sentia-me fraca e com vertigens, não sabia a quem pedir socorro, quando vi Beatriz que de longe em uma porta me chamava. Dirigi-me lentamente em sua direção e ela me disse: "Vamos, vou levá-la daqui." Aproveitei para perguntar-lhe como Dante suportava tanto tempo aquele inferno e ela respondeu que ele já estava acostumado, ele já tinha passado daquele estágio e não era mais afetado por aquele ambiente.

Dirigi-me então à Dante, antes de partir, e perguntei:  o que você está fazendo aqui no inferno, se você já passou desse estágio? Ele respondeu: É que eu estou fazendo um filme que é a continuação do Apocalipse Now e se chama Apocalipse Sempre . Questionei: mas de acordo com o letreiro luminoso, tudo que acontece dentro acontece fora, e todo mundo que está aqui, está lá fora também, que necessidade você tem de vir pra cá, então? Ele disse: É porque aqui está o resumo. É mais fácil de fazer a sinopse e escolher os personagens principais.

Beatriz me esperava e eu a acompanhei. Enquanto seguia para outro estágio pensava com os meus botões: se Dante depois do Inferno se tornou cineasta, quem sabe eu não me torne pelo menos uma roteirista?

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EU, personagem fictícia. O que seria de nós se não houvesse a ficção?

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 20/06/2001


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