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Maria
Ela se foi devagarinho...Como um pássaro. Antes de sumir pelos caminhos que lhe levariam olhou para trás e repassou as imagens e quadros de uma paisagem conhecida e que se ia. 

Viu o verde dos “invernos” no Lambedouro, onde nasceu, casou e teve seus filhos. As enchentes do rio, os pés de ata carregados no oitão da casa. As espigas de milho verde chegando casa adentro, trazidas pelo marido e o filho, o armazém se enchendo de rapadura, farinha, feijão, milho e outros gêneros. A canjica de milho quente e gostosa com canela, as conversas agradáveis no alpendre e os banhos de açude. O marido companheiro e prestimoso, os filhos alegres crescendo.

Olhou um pouco mais e se viu em Oiticicas, já morando na casa que pertencera a seus pais. O movimento dos festejos da padroeira, o cajueiro grande e intrépido no quintal, testemunha de bons momentos vividos ali com a família.

Desvia o olhar e sobe a ladeira para Viçosa. Um patamar não desejado: A doença terminal de seu amado companheiro e marido. Acompanhou-o reunindo todas as suas forças, sabendo que os médicos o tinham desenganado. Os dias eram longos e a cada dia ele se ia um pouco. Morreu com suas mãos entre as dela quando ela não pôde mais retê-lo. Cuidou dele e de todos os preparativos de seu velório, como se ainda estivessem juntos, como se ainda fossem os velhos tempos.

Quando por fim, tudo acabou, e viu que ele já não precisava mais dela, quis morrer... Quis enlouquecer...Quis sumir. Nonsense da existência...Nonsense do amor....Passaram-se dias de delírios, fora da realidade. Suturavam-se as feridas, curavam-se as dores, em algum lugar não atingido pelos conselhos lógicos e humanos. Nenhuma designação cabível, nenhum conceito apreciável e justo, para aquela dor e encruzilhada.

Voltou para todos, depois de uma quantidade de dias, disposta a tomar as rédeas de sua vida. Enlutou-se para o amor. Viúva para sempre tocou o rumo de sua vida, lutando pela sobrevivência e educação de sua família.

Deixou para trás o sertão, o vale do Lambedouro. Agora, em sua loja de tecidos, trabalhando com o filho, cumpria seu cotidiano. Filhos estudando na cidade, filha mais velha casando, o caçula mal começando a aprender a falar. Morou em várias casas, até comprar uma antiga que aos poucos foi se transformando. Cada vez mais parecida com ela mesma: O jardim sempre florido, o traçado peculiar da copa e cozinha com dois terraços e uma varanda, o salão onde mantinha sua roda de amigos com o jogo de cartas.
 
 

Os aniversários e comemorações sempre concorridos e com muita alegria. A cada ano dava um toque de pintura diferente nas paredes e janelas antigas, alegrando aquela esquina da cidade que tinha uma certa personalidade. A casa de Maria era conhecida, a família de Maria também. Mulher, mãe, comerciante, chefe de família e aos poucos foi se tornando avó. Bastião e protetora de toda a família cresceram-lhe asas tentando abarcar todas as necessidades.

Nas tardes modorrentas e de pouco movimento na cidade, ela podia ser encontrada em sua loja. Quando sem freguês, divertia-se com um dos seus passatempos favoritos: Leitura de romances e livros de bolso. À noite o jogo de cartas lhe aguardava. Aposentou-se depois de um longo tempo de trabalho e de muitas primaveras completadas. Seus netos e bisnetos, novas alegrias, já começavam a crescer.

Agora, algo diferente lhe acenava, chamava-a para completar uma tarefa ou para dizer-lhe que sua viuvez acabara. Para os que ficam é preciso lembrar com Milton Nascimento e Fernando Brant:

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça.

É preciso ter gana, sempre.

Quem traz no corpo a marca Maria, Maria

Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça

É preciso ter sonho, sempre

Quem traz na pele essa marca

Possui a estranha mania de ter fé na vida

Ela agora se ia. Dirigiu os olhos para uma direção indefinida, um segredo alegre não partilhável.Voltou um pouco a cabeça para trás, fez um gesto e um balbucio: Mande-me um sorriso.

Um sorriso para você Maria!

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Para todas as Marias...Maria das Dores, Maria das Flores, Maria Felisbela.

In Memoriam
Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 07/01/2001

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