PRINCIPAL

CRONICONTO

GALERIA

PEPEGRILLO

MOMENTOS

MURAL

CULTURA


Outros Escritos

 

Mal Traçadas Linhas

Muito tempo já passado, desde aquela época em que eu lia e escutava contos de fadas, e também contos dos feitos heróicos dos matadores de onças, em um lugarejo perdido chamado Tabuleiro. Estórias contadas por Adelaide, moça de Tabuleiro, que durante treze anos morou com minha família, auxiliando minha mãe nos serviços domésticos.

      As estórias beirando o realismo fantástico situavam Tabuleiro e seus moradores na fronteira entre a realidade e a ficção, as lembranças afetivas e a dura realidade da sobrevivência em um lugar de difícil acesso, seco e com onças que espreitavam os caminhantes nas estradas, devoravam os poucos animais, reservas de alimentos, e povoavam a imaginação. Ser um grande herói era ser capaz de enfrentar onças e ir buscá-las em suas furnas e voltar com vida, mesmo que algumas vezes mutilado.

          Também era necessário saber evitá-las. E isso sabia "seo" Chico, pai de Adelaide, que fazia ano sim e ano não, o percurso a pé, do longínquo Tabuleiro no sertão, perto do Piauí, até Viçosa, na serra da Ibiapaba-Ce. Fazia a travessia pelo sertão, pousando aqui e ali, em casa de conhecidos, subia a serra, e mandava avisar à minha família por pessoas que encontrava na estrada, em caminhões e cavalos, que estava chegando.

       Eu e meus irmãos, crianças, ficávamos na expectativa, com o olho na estrada que passava perto de minha casa. Quando algum de nós avistava, de longe, seo Chico, corríamos todos para recebê-lo como verdadeiro herói, depois de tão longa caminhada. Tinha tantas estórias para contar, com tantas e tantas viagens, em um tracking de causar inveja aos peregrinos de Santiago de Compostela. Chegava abatido, cansado, com um pequeno bornal, somente o que podia carregar na viagem.

       Saíamos todos, quase rebocando-o até a casa, naquela impaciência de criança, querendo saber das estórias e causos novos que ele trazia. Minha mãe nos afastava para que ele pudesse descansar,   alimentar-se, com a promessa de que nos dias seguintes teríamos as novidades. Nos dias seguintes, já recomposto da viagem, ouvíamos atentos suas estórias. Muito do que ele contava, os adultos falavam, era pura fantasia, ele aumentava. Mas que importava isso para nós, se "sêo" Chico já com idade de quase setenta anos, era capaz de tudo aquilo. Um verdadeiro e fantástico herói!

          Quando eu já sabia ler e escrever bem, orgulhosa do feito, por volta dos 8 anos, tornei-me a escrevinhadora de Adelaide. Sem saber ler e escrever ela precisava desses serviços para fazer suas cartas para parentes e amigos. Em conjunto com as cartas vinham as estórias e suas tristes lembranças afetivas de Tabuleiro. Do dia em que seu pai saiu em busca de recursos, pois não tinham mais do que viver, e pela demora, falta de comunicação -era um lugar muito isolado- começaram a pensar que ele se fora e os abandonara à sorte. E a alegria, quando em um entardecer, como uma miragem, o viram de longe voltando para todos.

          De outra feita, também, ela estava sendo perturbada por almas, que não a deixavam dormir, balançavam sua rede e chegavam a se deitar com ela. Vivia um verdadeiro suplício, até que lhe ensinaram o remédio certo. Ela deveria rezar uma tal oração, antes de dormir, e sonharia com a alma. Ela não sabia ler. E eu fui a escolhida para tal tarefa. Eu lia e ela repetia a oração. No dia seguinte, acordei cedo para saber o resultado. Ela havia sonhado com a alma. Segundo o sonho, era sua outra mamãe, como ela chamava a sua madrasta que já falecera. Ela queria uma missa, e depois de realizado tal encargo a alma deixou Adelaide em paz.

         Eu ainda menina de 8 anos, me sentia muito importante lendo e escrevendo cartas para adultos e dando idéias de como deveriam ser. Tinha, entretanto, um detalhe que me incomodava. Ela sempre queria que eu começasse as cartas com a frase: escrevo estas mal traçadas linhas. Aquilo feria o meu orgulho de escrevinhadora aplicada, e eu argumentava que não eram mal traçadas linhas, porque eu escrevia bem, não estava errado. Ela dizia que preferia assim, porque achava bonito. E assim, como ela gostava, eram iniciadas todas as cartas.

          Em um dia triste Adelaide se foi. Tivemos poucas notícias dela.  Ficaram as mal traçadas linhas.

----------------------------------------------------------------------------

Para você Adelaide, onde estiver, dedico estas mal traçadas linhas.

--

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 01/Novembro/1999


Voltar p/Croniconto


Artesanias - de Verônica Miranda-www.veronicammiranda.com.br

A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE SITIO NÃO ESTÁ PERMITIDA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS