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***Cronicando***

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Iniciação

Desde pequena tive fascínio pelas  secções de mercearias que vendiam fumos, cigarros e isqueiros antigos, não descartáveis. Depois, já adolescente, não me atraíam muito os cigarros, mas as tabacarias tinham um encanto irresistível, com aqueles fumos perfumados em latinhas decoradas, cigarrilhas e charutos em caixinhas delicadas.O ambiente das tabacarias me parecia mágico. Entretanto, nunca me imaginei consumindo tais produtos.

Mas, um dia estava reservado para um encontro mais próximo entre eu e a tabacaria. No início dos anos 80, estava com um grupo de colegas realizando uma pesquisa de campo nos sertões de Quixadá e Quixeramobim, no Ceará.  Entrevistávamos pequenos produtores rurais. Durante todo o trabalho um colega fumava seu cachimbo. Subia um aroma gostoso do fumo, e aos poucos estava todo o grupo fumando coletivamente. Fiquei fascinada pelo cachimbo e decidi que queria aprender a fumá-lo. Pedi ao meu colega que me ensinasse. Ele me falou: ensinar nada, para fumar cachimbo  você tem que ser iniciada. Quando voltarmos à Fortaleza resolveremos isso. Ficou combinado.

Quando voltamos à Fortaleza, marcamos o dia certo para a tal iniciação. Ele disse que  não me preocupasse, era algo simples. Eu estava pesquisando no Instituto do Ceará, na Praça do Carmo, quando meu colega chegou. Vinha de moto. Eu sem carro, ele resolveu me dar uma carona. Sem muito costume, e mesmo com trauma de queimadura de perna causada por moto, resolvi aceitar a carona. Submeti-me ao capacete e subi na garupa da moto. Magra e miúda, com toda aquela indumentária parecia com a formiga atômica. Para quem não sabe, formiga atômica era uma heroína de desenho animado. Formiga, voadora e de capacete. Tudo pela iniciação.

Seguimos, então. Meu colega levou-me a uma tabacaria antiga, vizinha à antiga livraria Arlindo, próxima aos correios. Ali sim, era um ambiente antigo. Em primeiro lugar ele me mostrou tudo: as prateleiras, os tipos de fumo, de cachimbo e os acessórios do cachimbo que eram vários. Contou um pouco da história da tabacaria. E depois, então, passou a me falar de todo o ritual: desde o ato de colocar o fumo, que é uma arte, senão o cachimbo apaga, até a limpeza do cachimbo que é fundamental e que necessita  para isso de acessórios próprios.Tinha que sair de lá com o kit completo. A marca do fumo também era importante conhecer.

Chegou, então, o momento da escolha do cachimbo. Vimos vários e ele foi vendo o tamanho e as condições de ventilação do cachimbo, para que não se apagasse facilmente.Quando eu ia pagar ele falou - não, o primeiro cachimbo tem que ser um presente do iniciador - e me presenteou o cachimbo. Saí contente de lá, com o cachimbo, e o kit completo dos acessórios, já me sentindo iniciada. Até aí eu não sabia que estava apenas começando.

Fumava pouco o cachimbo, mas diariamente tinha uma hora certa. À tardinha fumava meu cachimbo e me desligava do mundo, enlevada pelo perfumado aroma. De repente percebi, não precisava de ayahuasca, nem de peyote para chegar às portas da percepção. E nisso eu não havia sido iniciada. Comecei a preocupar-me com tal resultado. Não demorou muito e resolvi abandonar o cachimbo definitivamente. É que eu havia lido uma reportagem sobre cachimbos e câncer de boca.

Desde então, sem fumar cachimbo, aprendi a sentir profundamente outros aromas, da natureza, do cheiro de mato quando trabalhava na zona rural, da maresia, e aprendi que podia meditar sem ele, até trabalhando.

Mas guardei o cachimbo muito bem guardado e, apesar de tantas e tantas mudanças, carreguei-o comigo para onde fui. Meus sobrinhos pequenos o conheceram e o queriam como brinquedo. Não quis me desfazer dele.

Ainda outro dia estava pensando por que eu teria guardado um cachimbo durante tanto tempo, se não mais o utilizava? Agora, pensando bem, encontrei um sentido para tudo isso: Ele estava aí o tempo todo para me lembrar que sempre é necessário fumar o cachimbo da paz.


Meu iniciador, cadê você?

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 03/janeiro/2000


Aqui você me encontrará sempre com o cotidiano, com o prosaico, com o divertidamente humano, com o essencial que está presente em nossos encontros e desencontros do dia-a-dia. Aqui você me encontrará cronicando.


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