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CONTANDO UM CONTO


Pra não passar em branco ou Homem também debuta

Naquela pequena cidade interiorana onde nascimento, morte e aniversário eram motivos para comes e bebes buscava-se motivos de comemorações. Em algumas datas significativas, como 15 anos para as meninas, casamentos, era de praxe a festa, fosse como fosse. Faltava dinheiro para tudo o mais, menos para essas comemorações consagradas.

A vida difícil de uma família daquela vizinhança, com muitos filhos e, portanto, com muitas prováveis comemorações sempre levou aquela mãe de família a um impasse, comemorar ou não comemorar. Afinal de contas a situação econômica da família não estava boa, mas não queria fugir à regra. No dia do aniversário, entretanto, cedo mandava avisar  aos vizinhos que os filhos comparecessem à tarde para uma pequena comemoração. Quando lhe perguntavam se tinha mudado de idéia sobre a comemoração da data replicava: não é uma festa é só pra não passar em branco.

Logo, logo, a vizinhança observava a azáfama na casa do aniversário. Movimento de entradas e saídas com bolos, frangos para assar, salgados para fritar, cadeiras e mesas que chegavam, a casa se transformando....E por fim, para surpresa de todos que esperavam algo pequeno e simples, a casa ficava cheia de convidados com comida a sobrar.Tarde da noite ainda se ouvia o arrasta-pé, ao som de forró, boleros. E assim se repetia em quase todos os aniversários naquela casa. Quando chegava o convite no dia do aniversário todos já sabiam e repetiam: "Só pra não passar em branco".

Mas essas surpresas que acabaram se tornando rotineiras ainda trariam algo novo na cidade em termos de comemorações. O filho único da família ia aniversariar-15 anos. Idade em que as mulheres fazem festas e comemorações quase ritualísticas. As meninas já sabiam.Depois dos 15 anos poderiam namorar oficialmente, com a licença dos pais, poderiam usar salto alto, maquiagem e coisas do gênero. Assim, a festa dos 15 anos para as mulheres representava um marco nunca contestado: Estava pronta para ingressar no mundo adulto e encontrar um parceiro para casar.

Os meninos ainda tinham tempo para crescer, pensar em festa de 15 anos para meninos era descabido, era tabu. Mas, de repente a comunidade se surpreendeu mais uma vez. Por volta do meio-dia já se observava um tremendo movimento na casa da vizinha. Todo mundo começou a se perguntar: Será que ela vai ter coragem de celebrar os 15 anos do filho? Será que ele vai aceitar passar essa vergonha? Homem debutando nunca se viu por ali. Não demorou muito chegou o convite: "Mamãe mandou dizer que você levasse os meninos à tardinha para o aniversário". Ao se perguntar: "E vai ter festa de 15 anos? A resposta foi: "É uma coisinha de nada, só pra não passar em branco".

Os observadores da vizinhança ficaram a postos. Alguns com pena do aniversariante diziam: Será que o menino está concordando com isso? Será que ele vai ter coragem de aparecer na festa? A azáfama na casa aumentava, o cheiro dos quitutes invadia as casas da vizinhança. Não demorou muito e se ouviu um murmurar e um reboliço, um deslocamento das pessoas que se escondiam detrás de portas, janelas, para observar. Tinham chamado o fotógrafo para fotografar o aniversariante naquela data especial.

Alguns faziam apostas de que ele não teria coragem de aparecer. O fotógrafo com um lambe-lambe se preparava na calçada. Aumentava o número de observadores meio escondidos. Achavam a situação um tanto constrangedora. Já era humilhação demais para o rapaz, ainda mais saber que estava sendo observado. De repente um menino falou: Ele já tá vindo. A expectativa aumentou. Apareceu um belo rapaz, alto, corpulento, com aparência de uns18 anos. Com um grande sorriso de satisfação nos lábios e todo vestido de branco(camisa e calça).

Ouviu-se um murmúrio: "Jesus... Até parece que ele está vestido para a Oferta." A Oferta era outra dessas festas um tanto ritualísticas que ocorriam no mês de Maio, em que somente meninas (todas impúberes) vestidas de branco, com grinaldas, levavam ramalhetes de flores para a Virgem. Saíam cantando em procissão pelas ruas principais da cidade e adentravam na Igreja para colocar as flores aos pés de Maria:

"Tiramos a flor do galho 

para ofertar à Maria

Vamos depô-las no altar 

Ainda banhadas de orvalho"

Ora, nada mais insultuoso para uma masculinidade iniciante do que ser comparado com meninas impúberes. Mas o nosso aniversariante, ao que parece não estava preocupado com esses aspectos. Fazia poses para o fotógrafo com um rosto banhado de felicidade. Aquele era seu dia e nada o estragaria, nem os comentários alheios.

Depois de muitos comes e bebes, altas horas da noite ainda se ouvia a música e o arrasta-pé. A partir daquele dia nada mais seria como antes na pequena cidade. Um tabu havia sido quebrado. No esforço de não "passar em branco" um homem havia debutado.

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Em muitas ocasiões deixamos de cumprir aquilo que nos realiza profundamente e nos faz feliz, para cumprir os tabus. O melhor mesmo nessas ocasiões especiais é não deixar "passar em branco".

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 15/03/2002

 


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