FALE COM ELES

(Um olhar sobre a cultura)

 MULHERES EM MARCHA

(Os freios à Marcha das Mulheres)

(Veja Arquivos)

Vinha há tempos querendo escrever nesta seção, esse último e reticencioso artigo (porque os fins trazem um novo começo), suscitado pelas marchas das mulheres, que começaram a acontecer em vários países diferentes e no Brasil dando ciência ao mundo que estavam assinalando o início de uma mudança. Algumas mulheres e feministas chamam esse fato de início da quebra de estruturas velhas e cambaleantes do sistema patriarcal, que significa por um lado a “desobediência” das mulheres a esse sistema. E por outro lado, significa marcar novas proposições para uma cultura mais equilibrada, mais integrada, onde seja reconhecida a participação e importância do feminino.

  Essas questões passam do nível individual ao coletivo e vice-versa. E muitas vezes temos que recorrer à História em novos enfoques e abordagens, para resgatar as possibilidades contidas desde os primórdios e entender as rupturas, os sofrimentos, as divisões, para que se possa ter um presente sempre em movimento, mas mais inteiro, com possibilidades da própria humanidade caminhar para seus novos sóis. Dessa forma, as mulheres não estão em marcha somente nas ruas, mas estão marchando na História. E para continuar marchando é necessário observar e reconhecer os freios que individual e coletivamente dificultam essa marcha.

Pensava neste artigo, mas não encontrava nenhum começo adequado. E eis que me chega uma frase da aldeia global que diz: “Quando as coisas escaparem ao seu controle não reclame, apenas ore.” E essa é uma frase que parece da mais alta espiritualidade de oriente a ocidente reconhecendo a necessidade da “intercessio divina”, como uma sabedoria, que através de nós mesmos poderia retomar a direção da vida, dos problemas e suas resoluções. Mas, quando colocamos isso em um contexto cultural e histórico muda o seu significado e com essa frase aparece uma quantidade de justificativas e ações que não favorecem àquelas pessoas que, pela assimetria de poder existente na sociedade e cultura, com essa frase saem muito prejudicadas.

Para situar em um contexto, essa frase é dita desde os primórdios da colonização do Brasil, em que as religiões foram usadas como uma forma de colonizar os povos, colonizando as mentes e as almas. E essas religiões, a jesuítica e a católica herdeira do “Santo Ofício”, da Inquisição, já traziam todo o ideário de submissão das mulheres e dos povos. Esse é um tema que existe para ser bem debatido e deve ser objeto de outros artigos. Mas por enquanto fiquemos na idéia de que as mulheres “não deviam reclamar, mas orar”. Afinal de contas, elas não estavam no controle. Elas já sofriam muitos tipos de violência, que a Igreja portuguesa e espanhola acatava e justificava.

Em algumas leis ou posturas que regulavam a vida dos colonizados a partir da Coroa Portuguesa, para situar nosso país, foram descobertas algumas que regulamentavam a quantidade de surras que as mulheres podiam sofrer durante a semana. Porque as mulheres precisavam de uma educação firme, por sua natureza, que segundo as doutrinas da Inquisição eram rebeldes, perigosas e tantas coisas mais. Portanto, as surras eram admitidas com essa finalidade, assim como também em escravos e indígenas. Mas não somente isso.

Se entendermos que grande parte das mulheres que geraram filhos com portugueses e outros europeus nos núcleos coloniais eram de origem indígena, estupradas e submetidas para formar famílias à revelia de suas culturas, podemos entender hoje à luz dos problemas e da psicologia e antropologia, ciências que estudam isso, que foi gerada uma quantidade de violência dos mais variados tipos, que vão da família à sociedade como um todo. A formação das famílias, principalmente nos núcleos coloniais, foi realizada de uma forma profundamente dissociada culturalmente, afetando psicologicamente, emocionalmente, afetivamente e culturalmente as famílias e principalmente fizeram reverberar, através das gerações, toda a sua dor, a ferida cultural e a fragmentação de suas psiques ou almas.

Durante séculos e de várias formas a religião foi um meio de submeter mulheres a essas violências, que as fragmentaram e que causaram muitos danos psicológicos a elas e às próprias famílias que tiveram que suportar criações deformadas, abusivas, dissociadas e neuróticas. Obviamente que isso vai gerar uma bola de neve nas próprias famílias, na herança filogenética, portando desde aí todos os complexos difíceis de assimilar, que foram se tornando autônomos. Com isso também se registra a ocorrência de consangüinidade muito grande, justamente para evitar que as famílias tivessem sangue dos povos indígenas e afros. Mesmo assim a miscigenação aconteceu e em grande parte porque os portugueses que aqui chegaram, em sua maioria eram homens, os degredados, em uma viagem que era uma aventura e forma de escapar das prisões abarrotadas portuguesas.

Uma das questões importantes é que o elemento natural que liga a mulher à própria terra e à natureza, parte importante da psique feminina, foi castrada por fazerem as mulheres indígenas renunciar às suas culturas. Pela negação do lugar próprio da mulher nativa no contexto da miscigenação e devido à religião cristã, que com afinco e determinação, desde a inquisição alijava as mulheres da natureza. A natureza era coisa do diabo e as mulheres que se ligassem a ela seriam excomungadas. As mulheres deveriam apanhar por se identificarem com a natureza, pois era coisa do demônio. Elas deviam parar de reclamar e orar nos templos e em casa para se acalmarem e servir ao Deus colonizador e obviamente aos homens e à cultura patriarcal colonial.

Se isso já era difícil para as mulheres em uma sociedade ocidental, com outros costumes, imagine o impacto de tremenda mudança nas vidas das mulheres indígenas obrigadas a constituir família com brancos, que não aceitavam sua relação tão direta com a natureza. Isso significou uma dissociação terrível na alma ou psique dessas mulheres: o roubo de sua cultura, de sua relação com a natureza, de suas almas. Nada fica esquecido. As feridas abertas e costuradas através dos tempos, da dissociação cultural, da dissociação da natureza, de aceitar um Deus ou divindade que não lhe pertencia era também uma ferida espiritual. Como diria a canção, as mulheres indígenas submetidas à miscigenação e suas descendentes tornaram-se sem saber “feras feridas no corpo, na alma e no coração". Acresce-se um dado importante, que os indígenas não batiam nas mulheres, que passaram a apanhar dos portugueses, porque fazia parte da educação colonial e religiosa das mulheres e das crianças.

Essas questões e outras são estudadas no "Espelho Índio. A destruição da alma indígena pelos Jesuítas" de  Roberto Gambini e o que isso resultou em relação à anima ou princípio feminino. Assim discorre Gambini sobre a visão dos jesuítas citando Nóbrega: (...) "Já em 1549, nem bem chegado, Nóbrega estava tão assustado com as índias  que chegou a solicitar ao seu superior em Lisboa que despachasse algumas mulheres para atrair a atenção dos colonos, pouco importando que levassem "vida errada" (Carta 7 (1549) §2 Apud Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuitas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988. P.183) Qualquer mulher seria melhor que uma índia. Em outra carta, ele é mais explícito e diz que até mesmo prostitutas serviriam, tão claramente indicando que as índias valiam ainda menos, já que para ele elas representavam o pecado, o mal e a destrutividade. Assim se referiu Nóbrega a D. João III:

"(...) São tão desejadas as molheres brancas quá, que quais-

quer farão quá muito bem à terra, e ellas se ganharão

e os homens de quá apartar-se-ão do peccado." (Carta 47 (1552) § 2 apud Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuitas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988. P.186).

"Para o chefe da missão, a união entre brancos e índias constituía  o maior desastre. Nesse sentido, pediu ao rei que só enviasse  para o Brasil governadores casados, para que a terra não fosse destruída. O que está na base desse processo de contato entre dois mundos é uma constelação arquetípica negativa que impede a união de opostos ao nível mais elementar, o que implica também a impossibilidade de relacionamento com a anima. Ora, a miscigenação querendo os jesuítas ou não foi o padrão histórico que prevaleceu.   Mas como já sugerido, tratava-se mais de uma união biológica que psicológica. Na nossa cultura, a anima, ou princípio feminino permaneceu algo periférico, preferencialmente, aceito quando dá lucro. O brasileiro exalta o papel da mulher da terra, mas prefere que ela permaneça no nível de cornucópia-papagaio. E no que diz respeito ás índias em particular, os jesuitas gostariam que elas simplesmente desaparecessem do mapa, alegando que o pecado só seria evitado, después que acá uviere tantas mugeres que las no quieran." (Carta 47 (1552) §2 apud Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuitas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988 P. 188).

Há dessa forma o repúdio, a não aceitação ou desvalorização das mulheres nativas,  que querendo ou não representavam a anima e a ligação com a terra. A religião católica e cristã continuou pelos séculos dizendo às mulheres: Deixem de reclamar e orem a Deus. Isso não resolveu os problemas que temos no presente: Uma igreja patriarcal, cinzenta, praticamente de homens dirigindo-a, com grande escândalo de um clero cheio de abusos sexuais, pedofilias e mulheres doentes física e psicologicamente neuróticas, histéricas, abusivas, porque dissociadas de sua verdadeira natureza. Obviamente que dentro da Igreja existe sua própria contradição e aqueles e aquelas que trabalham para sua transformação.

Desde o final do século XIX quando Freud descobriu os males da cultura vitoriana e como a religião tornava as mulheres doentes, muita coisa começou a mudar na vida das mulheres e depois da revolução sexual dos anos 60 do século passado essas mudanças foram mais significativas. E, no entanto, ainda temos as religiões reverberando coisas parecidas, de ocidente a oriente. Outro dia vi um guru de religião oriental, que questionava a religião cristã em muitos dos seus fundamentos, mas dizia que as mulheres não deviam buscar justiça quando sofriam violência. E era a mesma história da religião cristã e patriarcal: Não reclame, ore e peça a “intercessio divina” porque você não tem o controle dessa situação. E depois justificava em outra fala completamente contraditória com o primeiro enunciado, que as violências ocorriam às mulheres porque elas eram “submissas”. Eu pensei e até escrevi : Será que esses gurus e religiões agüentam a insubmissão feminina? Porque em geral fazem a mesma coisa em todas as religiões: Colocam as mulheres para trabalhar para si e para as instituições religiosas, enquanto as submetem e as desprestigiam como ser humano de segunda categoria, sem poder de decisão e em uma espiritualidade vertical, hierárquica e até misógina, que não reconhece o feminino e a natureza.

O fato é que as mulheres ultimamente se rebelaram e colocaram alguns pratos a limpo. Entendendo isso em uma moldura da psicologia arquetípica percebemos que houve um desdobramento do feminino em nível do inconsciente coletivo¹. E isso significou colocar gurus na prisão por seus abusos, assédios e violações de mulheres e denúncias públicas de outros. As máscaras da Igreja Católica e outras cristãs começaram a cair também e mostrar o quão abusivo pode ser um clero, sacerdotes e pastores dissociados e baseados em ideologias e princípios que já não servem e que adoecem, se não forem mudados vão acabar destruindo a Igreja, o cristianismo e seus templos.

Além dos escândalos religiosos, os males familiares das dissociações psicológicas, espirituais e culturais, principalmente nos lócus em que foi realizada a colonização, são graves. Em época de profundas mudanças em vários níveis no planeta, a falta de inteireza e a dissociação causada por esse tipo de colonização, que se perpetuou através das gerações, traz violências e divisões no seio das famílias. Os complexos transgeracionais e autônomos gerados por toda essa situação e pela repressão da natureza das mulheres e da alma ancestral são parte da dissociação, das neuroses e das doenças que atacam as famílias. Os próprios sacerdotes que acompanham seus fiéis, se estudarem um pouquinho de psicologia, podem atentar para os problemas familiares que ocorrem nesses antigos núcleos coloniais e perceberão o quanto a colonização portuguesa e a colonização religiosa das almas, feitas pela Igreja, são devedoras dos problemas e dissociações culturais que se arrastam através dos séculos. Sobre essa questão C. G Jung, fundador da Psicologia analítica ou do inconsciente discorre:

"As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são inerentes a ela ; sem isto, os sistemas psíquicos parciais nunca as teriam cindido, ou melhor, não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessacralização de nossa época tão profana é devida ao nosso desconhecimento da psique inconsciente e ao culto exclusivo da consciência. Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, uma possessão da consciência que ocasiona uma negação fanática da existência de sistemas parciais autônomos. Mas diferimos dos ensinamentos da ioga budista pelo fato de negarmos até mesmo a possibilidade de experimentar os mencionados sistemas parciais. Isto representa um grande perigo psíquico, pois os sistemas parciais se comportam como quaisquer outros conteúdos reprimidos:induzem forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os elementos reprimidos reaparecem na consciência sob uma forma inadequada. Tal fato, evidente nos casos de neuroses, também o é no campo dos fenômenos psíquicos de caráter coletivo." (...) "O efeito é coletivo e sempre presente; os sistemas autônomos estão constantemente em ação, pois a estrutura fundamental do inconsciente  não é afetada pelas oscilações de uma consciência efêmera."

"Se negarmos a existência dos sistemas parciais, julgando ser possível superá-los por uma simples crítica do nome, o efeito dos mesmos nem por isso cessará, embora não possamos mais compreendê-los; a consciência também não conseguirá mais assimilá-los.  Eles tornar-se-ão um fator inexplicável da perturbação que atribuímos a algo fora de nós mesmos. A projeção dos sistemas parciais cria uma situação perigosa, uma vez que os efeitos perturbadores são imputados  a uma vontade pervertida e externa que, por força, é a de nosso vizinho, de l'autre coté de la rivière. Isto desencadeia alucinações coletivas, incidentes de guerra, revoluções; em resumo, psicoses destruidoras de massa."(Jung, C.G. Estudos alquímicos, Petrópolis RJ: Vozes, 2002, p. 42, 43).

Essas questões, portanto, estão sempre indo e voltando, através de várias manifestações sejam pessoais, sejam coletivas, pois  o movimento é a busca da integração e assimilação daquilo que foi dissociado, principalmente em épocas atuais em que  processos de integração psíquica, através do estabelecimento de crises, têm sido a ordem do dia. João Paulo II pediu perdão oficial às milhares de mulheres que foram queimadas como bruxas pela Igreja e está na hora de fazer mais. Somente perdão da Igreja não é suficiente. A pergunta é: De todos os lugares em que as mulheres se encontram em todo o ocidente, portando almas feridas de mulheres indígenas, assim como as consideradas bruxas, será que perdoaram a Igreja e as religiões? Isso não seria parte dos conflitos transgeracionais imensos e de uma imensa dívida da Igreja? É necessário entender o dano que as religiões sob esses princípios patriarcais contra a natureza da própria mulher fazem dissociando-as e como tornam os homens violentos e abusivos. Mulheres abusadas (stricto senso) são mulheres potencialmente abusivas. E aquelas que não buscarem fora da religião a recuperação de sua própria inteireza e de tornar-se consciente tornar-se-ão, como já existem, mulheres tomadas por um animus (o masculino contraparte das mulheres) destrutivo, patriarcal e colonialista. Sobretudo, porque busca a sua ancestralidade negando a sua própria natureza e o que as liga à terra, que são a ancestralidade indígena e as mulheres exemplarmente trucidadas e queimadas pela Igreja. Essas mulheres de animus destrutivo, sem entender seu próprio drama e os complexos que as habitam também não têm respeito pelos outros, por suas integridades e principalmente se esses outros são mulheres que iniciaram seus próprios processos de reconhecimento e inteireza.

Essas são conseqüências dos complexos autônomos² gerados pelos preconceitos e dissociação cultural da colonização européia e religiosa em nossas plagas. E por essa dissociação e por se negar a recuperar suas partes importantes, essas mulheres destroem a si mesmas, à família e ao entorno. Mulheres que parecem um colonizador: maltratando, subjugando, mandando, denegrindo, manipulando as outras mulheres e perseguindo àquelas que não se submetem ao seu jugo e ditames. Alguns poderiam chamar essas mulheres de algum período histórico de matriarcas, mulheres coronelas, mas de fato elas eram pessoas divididas, dissociadas e lídimas representantes da cultura  e poder patriarcal. Isso é diferente de assertividade, já que as mesmas aceitavam e aceitam os abusos e violências da sociedade patriarcal contribuindo para submeter outras mulheres.

Sobre a dissociação e os complexos autônomos Gambini comenta Jung: "Podemos acompanhar o desenvolvimento desse mesmo pensamento no Comentário sobre o Segredo da Flor de Ouro. Nesse ensaio Jung diz que complexos dissociados, isto é  conteúdos psíquicos autônomos, são uma experiência que todos nós temos e que seu efeito desintegrador sobre a consciência  manifesta-se quando os mesmos se tornam um sistema psíquico separado e fragmentário. Tais sistemas que apresentam características de "pessoas" distintas do sujeito, aparecem com toda força na doença mental, em casos de cisão da personalidade e em fenômenos mediúnicos - assim como na fenomenologia da religião. Segundo Jung, conteúdos inconscientes ativados sempre aparecem primeiro como projeções sobre o mundo exterior, mas no decorrer do desenvolvimento mental eles são gradualmente assimilados pela consciência e reformulados em idéias conscientes, desprovidas de seu caráter autônomo e pessoal. Enfatizo mais uma vez que não se trata de uma condição patológica em si (apesar desta poder vir a prevalecer) pois tais tendências à dissociação são inerentes a psique humana- caso contrário, conteúdos dissociados não seriam projetados e nem espíritos ou deuses teriam jamais existido."(Jung apud Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuitas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988 p. 41 ).

"O perigo psicológico reside exatamente em negar a existência de tais sistemas autônomos, pois eles continuam a funcionar de qualquer jeito criando distúrbios dos mais variados tipos - e nesse caso não serão compreendidos nem assimilados, permanecendo como resultado de algo maléfico fora de nós."(...) E daí a necessidade da tomada de consciência dos conteúdos como "psicologicamente reais", das projeções e do que as causam ou então eles se tornam reais como projeções no mundo exterior. (Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuítas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988 . P.41).  Obviamente que não se exclui de toda essa trama o papel colonizador masculino e terrível, que não está sendo objeto do artigo, mas aqui estou buscando os freios que carregam as mulheres quando se trata de marchar adiante e o quanto muitas delas necessitam recuperar-se em sua inteireza e curar-se das dissociações criadas psicológica e historicamente pela forma de colonização e pela religião imposta às mulheres e aos povos ligados à natureza. É necessário enfrentar e reconhecer esses sistemas autônomos que impedem ou dificultam também a sororidade tão em volga e tão necessária às mulheres em sua caminhada. Sem negar o fato de que as religiões continuam com o mesmo discurso de silêncio, obediência e submissão. E de fato as mulheres precisam falar, desobedecer e não se submeter mais ao sistema religioso patriarcal, buscando uma espiritualidade própria e autêntica, reintegrando sua própria natureza.

É importante pensar também em uma dada história, escrita por muitos, que se reporta às origens e aos pertencimentos. Parece que há, principalmente nos núcleos de colonização, a necessidade de fazer genealogias e buscar sua origem no país colonizador. E saber se seu nome tem dois eles, dois erres ou outras letras que mostrem que realmente é de uma origem européia legítima. Olhando no espelho e se observando atentamente não há como esconder as características da miscigenação, seja na cor da pele, nos cabelos, nos olhos, pois tais tendências estão até na forma de caminhar, se portar, fazer gestos e muitas outras características que não podem negar essa realidade. É só observar os loiros de lábios grossos ou loiros com traços indígenas. Nessa história e nessa busca é como se houvesse um vazio de " pertencimento”, por não se querer assumir a ligação com a própria terra, que vem dos povos nativos, originários. E isso significa por outro lado que o complexo cultural já está funcionando.

Durante a constituição dessa cultura colonial e do estabelecimento dos núcleos de moradia e povoamentos ocorreram muitas divisões por preconceitos, nas famílias, em que os casamentos não podiam ser com qualquer pessoa de qualquer origem, que não fosse “de família”. Esse preconceito seguiu pelos séculos nesses locais e  isso significava ser família originalmente descendente dos portugueses ou colonizador, daí a necessidade de compor genealogias, em grande parte mentirosas. A sociedade tinha suas festividades muitas vezes divididas em “festas de primeira” e “festas de segunda”, inclusive nas festividades da Igreja, mostrando que havia famílias de origens pretensamente "melhores" que as outras (É como a denominação carne de primeira e carne de segunda). Tudo isso gerou repúdio à própria ancestralidade no que se refere à ligação com a própria terra de nascimento, com os povos nativos e originários e com a própria natureza. A Igreja católica pregava que os indígenas não tinham alma e somente o batismo na religião cristã poderia humanizá-los. Essas questões geradas historicamente desde o processo de colonização, em que as pessoas casavam para branquear famílias ou fazer parte de uma família legítima e “de primeira” gerou também, nesses núcleos, uma consangüinidade com muitas conseqüências de doenças físicas e mentais.

Voltando às mulheres, a dissociação cultural retira dessas mulheres a sua parte feminina, de relação horizontal, para tornarem–se pessoas com compulsão de mandar (mulheres mandonas), abusar de forma neurótica de outras mulheres e da família. Uma mulher assim forma homens muito piores do que os que já existem: violentos, doentes e dissociados, incapazes de ter uma anima (contraparte feminina nos homens) minimamente sadia, assim como promove a reestruturação de complexos terríveis nas próprias filhas e netas. As pessoas tomadas por esses complexos, que não têm consciência do mal que causam a si e aos outros, não atuam e nem vivem conscientemente, porque a dissociação não permite. Mal sabem que estão turbinadas por complexos autônomos que se reestruturam através dos séculos e tomam conta delas, quando começam suas ações de querer mandar, subjugar, denegrir, humilhar, dissociar e não respeitar os direitos de pessoas e de familiares, que em tese deveriam ser seus entes queridos.

As famílias dissociadas não podem amar verdadeiramente e por isso precisam se recompor da maldição, que as atravessam em séculos e que se transformaram em conjunto com outros processos, em sintomas narcísicos, da alma que persiste com um vazio daquilo que era necessário e que ficou perdido. A recuperação dessa vitalidade, das partes perdidas da alma só pode ser realizada com a consciência dessas dissociações e seus efeitos e com o desejo forte de recuperar tudo aquilo que foi negado da ancestralidade, da natureza e do feminino, que pulsa e quer o seu lugar.

Essas questões de complexos autônomos e culturais estudados na psicologia analítica e em outras transpessoais são também partes de um processo histórico, que trouxe a miscigenação e o não reconhecimento e legitimidade dos povos originários e de suas heranças filogenéticas, que é parte dos miscigenados, mas que não são reconhecidas. Escrevendo agora, lembro de uma entrevista realizada por Milton Santos quando se debatia essas questões da miscigenação. Ele dizia que os problemas da miscigenação seriam (em uma etapa de integração) mais sérios para os considerados brancos, do que para os que eram reconhecidamente de identidade afro ou indígena. Exatamente porque toda essa herança filogenética dos miscigenados, ao não ser aceita em sua completude, gera conflitos internos profundos e dissociações. Uma pessoa dissociada e não integrada é alguém infeliz, lutando consigo mesma e projetando suas divisões internas e conflitos nos outros, criando sistemas familiares excludentes, que não aceitam as diferenças e alteridades.

Esses complexos transgeracionais são complexos culturais criados em um processo, no qual as famílias de uma dada cultura e culturas diferentes estabelecem relações de poder com muita assimetria, subjugação e em que foi usada a religião, que é parte profunda e arquetípica do indivíduo e da cultura, para essas finalidades, no caso finalidades das políticas coloniais. Se fizéssemos uma radiografia da alma das pessoas que herdaram esses processos veríamos, em uma parte profunda do indivíduo, o colonizador e colonizado dentro de si mesmo. E enquanto estas partes não se aceitarem internamente pela consciência e assimilação dos problemas que geraram essa dissociação haverá conflitos internos e projeções. Recusar e deixar uma dessas partes alimenta um complexo autônomo, que por sua força e energia toma conta do indivíduo. Como isso ocorre em um nível profundo e coletivo da psique, em geral é difícil compreender e tratar a dissociação. Mas, é uma questão mais generalizada do que se supõe e que interfere na vida pessoal e na concretude do indivíduo e suas relações.

Estamos falando de seres humanos que formarão a humanidade que está surgindo e que necessitam ser mais inteiros. Portanto, a recuperação desses aspectos na religião, nos substratos culturais e nas pessoas é de fundamental importância. É através dessas relações originais e suas causas que podemos sentir os efeitos que afligem a muitos, mesmo que a História seja um processo. Quando nos desligamos de nossa própria natureza, nos dissociamos em mil conflitos e perdemos nossa integridade pessoal. E assim em vez de paz estaremos criando apenas muitos “pés de guerras”.

As pessoas e principalmente as mulheres que lutaram para conseguir se reintegrar, apesar da cultura e sociedades patriarcais com vestígios coloniais, não podem aceitar os ditos e princípios de religiões que as dissociam e muito menos as ações abusivas e violentas de pessoas e familiares que são carregadas dessa carga destruidora. Que atuam sob efeitos dessas dissociações e complexos autônomos e  que parecem “ogros violentos” e irracionais, maltratando os próprios familiares. As pessoas e principalmente as mulheres devem reclamar, denunciar, trazer luz e esclarecimento para essas questões. Se alguém tem que orar, que seja para tornar possível trazer mais luz para esses problemas e não para deixar as mulheres quietas, subjugadas e doentes. O momento é de devolver a saúde e integridade das mulheres. Entender essas questões que dissociam suas naturezas é colocar os pingos nos iis. Recuperar a saúde e curar a dissociação das mulheres, apoiá-las em suas descobertas e necessidades de se ligar à terra e à natureza não é somente uma questão de justiça, mas é também uma questão de cuidar de várias gerações que estão formando uma nova cultura e uma nova humanidade. 

As religiões, parte do substrato arquetípico e cultural, que não entenderem isso estão indo para o seu próprio extermínio, pois as mulheres estão em marcha, necessitam dessas mudanças e a História não para. É movimento permanente.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 26.04.2019

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Notas e Referências Bibliográficas:

1 - Inconsciente coletivo -Definido por Carl Gustav Jung, da Psicologia analítica, "O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. " Vide mais em Jung, Carl Gustav- O conceito do Inconsciente Coletivo in Os arquétipos e o inconsciente coletivo- Petrópolis RJ:vozes, 2000. pag.51-60.

2. Ainda que os complexos (elementos básicos da psique objetiva) sejam formados no inconsciente pessoal e tenha uma casca formada pelas experiências da infância do indivíduo, ele tem também um núcleo arquetípico, que em última instância possibilita a este a resolução de muitos problemas,  porque levados à sua estrutura mitológica e simbólica é capaz de realizar a assimilação e transcendência dos sistemas parciais e autônomos. Aqui tentei enfocar os complexos como os sistemas autônomos gerados historicamente e que compõem um plano de fundo coletivo, podendo ocasionar distúrbios e transtornos nesse nível. Como coloca Jacobi sobre os estudos de Jung: "Certos complexos, escreve ela, surgem por conta de experiências dolorosas ou penosas da vida de uma pessoa. Elas produzem complexos inconscientes de natureza pessoal...Mas existem outros que vêm de uma fonte completamente diferente...No fundo são conteúdos irracionais dos quais o indivíduo nunca teve consciência e que, portanto, tenta em vão descobrir em algum lugar fora de si mesmo." (Jacobi, Apud Whitmont, Edward C. - A Busca do Símbolo. Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix. Capítulo 4. O  Complexo. p.63). E são transgeracionais porque se repetem como padrões de geração a geração em sistemas familiares, genealógicos, culturais e de herança filogenética. Apesar disso, os complexos possuem uma dinâmica que vai do inconsciente individual ao coletivo e vice-versa. Eles se retroalimentam nesses dois níveis e tanto podem possibilitar mudanças positivas na vida do indivíduo, pela assimilação e integração dos conteúdos inconscientes e autônomos, trazendo vitalidade, como podem ser fontes de perturbação patológica, pela falta de consciência e dificuldade de assimilação, gerando dissociações, neuroses e até psicoses. A resolução dos complexos autônomos em última instância se dá individualmente, na dinâmica, processos e concretude do próprio indivíduo, mas a consciência do pano de fundo arquetípico que pode envolver todo um grupo ou coletividade,  pode facilitar sua compreensão e busca pela assimilação dos sistemas parciais e autônomos. Sobre isso há um capítulo esclarecedor no livro de Edward C. Whitmont- A Busca do Símbolo. Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. Capítulo 4. O Complexo.

 

3- Gambini, Roberto - O Espelho Índio. Os Jesuitas e a destruição da alma Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988

4- Jung, C.G. Estudos alquímicos, Petrópolis RJ: Vozes, 2002.

5- Jacobi, Jolande - Complexo, Arquétipo, Símbolo. São Paulo: Cultrix, 1988.

6- Jung, Carl Gustav- Os arquétipos e o inconsciente coletivo- Petrópolis RJ:vozes, 2000.

7- Whitmont, Edward C. - A Busca do Símbolo. Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. São Paulo:Cultrix. Capítulo 4. O  Complexo.

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 26.04.2019

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