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(Um olhar sobre a cultura)

 Ojos Azules, um trotecito (Pas de Deux ibero-americano) para entender e curar seqüelas colonizadoras

(Veja Arquivos)

Antes e durante a XVII Cúpula Ibero-americana dos Chefes de Estado e as outras cúpulas paralelas realizadas neste mês, me peguei cantando Ojos Azules e ensaiando passos dessa dança tradicional do altiplano, um trotecito, dançada secularmente no norte do Chile, Argentina, Peru e Bolívia. A letra da música que gira sobre o tema da paixão impossível e da inexorável separação entre o colonizador branco, de olhos azuis e a indígena e colonizada, dançada em um ritmo de trote entre  homem e mulher, veio de forma forte e permanente. Mas só consegui perceber a direção e o sentido disso ao  me informar dos entreveros ocorridos entre Chefes de Estados latino-americanos e os Chefes de Estado espanhóis. Dentre elas a atitude do Rei da Espanha, que à moda antiga de 500 anos atrás mandou que se calasse o Chefe de Estado da Venezuela. Só dançando um trotecito desses para reencenar o antigo drama da relação colonizador-colonizado.

Os sentimentos nativistas dos latinos americanos acumulados em 500 anos e mais  saíram na resposta de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, junto com a revolta justa e democrática de muitos latino-americanos de tempos modernos e pós-modernos. Não vivemos mais tempos de reis e rainhas, e se o rei não canta de galo no seu próprio terreiro por que vai cantar em terreiro que não mais lhe pertence há mais de duzentos anos? Pois sim, historicamente isso é ainda tão pouco, diante de tantos séculos que os países da Europa tiveram para criar o seu espaço público e político, e fazer sua acumulação primitiva do capitalismo ora imperante  e cada vez mais escravizante, às custas destes países latino-americanos que agora se reúnem para, dentre outras coisas, reclamar de tal absurdo.

Pois são justas as intenções dos Chefes de Estados latino-americanos e mais justas ainda as reivindicações e proposições dos movimentos sociais reunidos na Cúpula dos Povos pela Amizade e Integração dos Povos  e a Cúpula dos Povos Originários. Mas os Ibéricos queriam de novo dançar o trotecito. Para quem não conhece a letra de Ojos Azules aqui está:

Ojos azules no llores*
No llores ni te enamores
Lloraras cuando me vaya
Cuando remedio no haya

Tu me juraste quererme
Quererme toda la vida
No
pasaron, dos, tres días
Tu te alejas y me dejas

En una copa de vino
Quisiera tomar veneno
Veneno para matarme
Veneno para olvidarte

A difícil relação colonizador-colonizado aparece clara nesse romance de fim trágico, impossível de ser solucionado, pela relação desigual em todos os sentidos: relação desigual de gênero, permeada pelo preconceito racial, etnocentrismo, colonialismo e muitos ismos mais. Mas essa é uma dança da qual não pudemos escapar durante esses séculos em que as terras hoje chamadas de Américas foram invadidas e as populações que aí viviam mudaram de forma inexorável seus destinos, a ponto de quererem matar-se  para esquecer-se de tal destino colonizado e terrível. Esse é um trauma cultural indelével que carregamos todos nós filhos deste continente e de formas diferentes para mestiços e indígenas. 

Essa dança, o trotecito, recoloca esse trauma na ordem do dia  cotejando permanentemente a morte desse vínculo e ao mesmo tempo a paixão ou dependência que existe nessa relação. No que diz respeito ao Rei da Espanha ele é  repudiado pelos seus ranços colonialistas, mas ao mesmo tempo chamado como árbitro nas desavenças entre Argentina e Uruguai. E isso significa que o trotecito ainda está sendo dançado de uma forma antiga, pois nossas Américas na conjuntura política mundial e americana já não são as mesmas. Torna-se necessário, então, atualizar os passos dessa dança. Apesar da grande mídia, atrasada e defasada em relação aos novos movimentos das Américas ter criticado a resposta de Hugo Chávez ao Rei da Espanha, mostrando que ela encarna o papel do colonizador por essas paragens americanas, sabemos que essas são as contradições com as quais temos que lidar até esses agentes caírem finalmente em si e verificarem que suas ações não têm mais sentido de existir. Os tempos que vivemos são outros,  e os ventos sopram para outros lados.

A Cumbre Ibero-americana veio mais uma vez mostrar a necessidade de mudança de rumo das nações que compõem nossa América. E para denunciar e mostrar a ponta do iceberg dos vínculos da dependência não só econômica, mas também de pensamento e de cosmovisão. Estamos em início da construção de uma nova civilização para os povos da América e os vínculos de dependência coloniais redivivos têm que ser quebrados.

Estamos diante de uma conjuntura mundial complexa apontada por vários pensadores como "Novo Capitalismo" que tende a agravar a já difícil situação econômico-social das Américas. Foi, portanto, a preocupação com as desigualdades sociais, o modelo de desenvolvimento dos países, a discriminação racial e de todos os tipos, as questões de gênero emergentes com a nova condição da mulher na presidência e mando de países, as migrações, a degradação ecológica, o respeito pela cultura e saberes dos povos originários e seus direitos às suas terras e auto determinação recentemente aprovados pela ONU, a integração de vários objetivos e metas de desenvolvimento, bem como o respeito pelas nações vizinhas e irmãs que pautaram as Cumbres realizadas de 08 a 10 de Novembro em Santiago do Chile.

De fato, e subterraneamente desenha-se o sonho da Pátria Grande,  e ninguém pense que a constituição desse espaço estará isenta de conflitos. Os conflitos ocorrerão necessariamente, e o que talvez tenha que se pensar como dispensável é a recorrência  a um Rei da antiga colônia para ser árbrito dos conflitos. Isso parece muito infantil. Chamam o papaizinho rei para arbitrar a guerrinha dos filhotes. Autonomia é a palavra chave se os caminhos que se querem percorrer são os da construção de uma nova civilização e vida para os povos latino-americanos. É necessário aprender a conviver com os conflitos e conseguir mediações para eles dentro da própria casa. São caminhos a serem trilhados e muitas lições a serem aprendidas.

Concomitantemente estão surgindo nos vários países elementos políticos que farão interargir as várias cosmovisões existentes nas Américas, e portanto, haverá mudanças nas formas de pensamento. Sobre isso muito há ainda que falar e escrever e muito caminho a ser trilhado e desbloqueado. Mas a perspectiva é de muitos encontros e de muita dança, revalorizando os trotecitos, sem precisar mais se matar para olvidar os terríveis desígnios dos colonizadores. Agora, com a nova composição e conjuntura  política podemos buscar alternativas, debruçando-nos sobre as questões que nos envolvem e buscando cada vez mais a autonomia. Agora, é a hora dos latino- americanos cantarem de galo, aqui em nossa América.

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda 

15 de novembro de 2007

* Clique aqui e ouça Ojos Azules.

Publicado também em A Fala - www.cepac-ce.com.br

 

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