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(Um olhar sobre a cultura)

A América e seu mito ou hierofania para um novo mundo

(Veja Arquivos)

 

Em dezembro de 2003 fiz um artigo sobre os dois mitos que nós brasileiros carregamos, um deles português, que se inscreve em uma percepção ocidental herdada de certa forma da cultura grega, e outra advinda de uma percepção oriental e das culturas e cosmovisão dos povos originários de nosso continente. Nesta última concepção,  o mito não encerra uma projeção, tal qual entendida na psicologia moderna, mas encerra a possibilidade de uma vivência e inspiração. O mito é vivenciado e inspirado para se chegar a uma síntese, a um eixo, a um centro, e a abertura de um espaço de convivência de múltiplas dimensões que nos formam como seres humanos e como coletividade. Aí se inscrevem também as hierofanias, que num impulso triunfal, sempre estão a compor e inaugurar os novos espaços de liberdade de conquistas humanas que são também, nessa cosmovisão, sagradas.

Esse pensamento e sentimento, de há muito estudado como um pensamento "mágico-mítico", e que pode ainda ser recuperado em outras conceituações, existe em nós brasileiros e americanos mestiços, ainda que em recolhimento. Sim, nós os mestiços, todos filhos dessa miscigenação americana temos condições, e eu diria até mesmo necessidade, de exercer e vivenciar esse lado que ficou soterrado com a supressão e cristianização da nossa cultura. A "civilização" em nossa América passa a ter outro significado, à parte dos pejorativos impostos, quando a própria coletividade em ebulição busca e quer fazer valer sua ancestralidade.

 Não se trata mais de negar essa ou outra cultura, essa ou outra cosmovisão e/ou religião.Trata-se de reconhecer as necessidades que emergem, quando o continente pulsa e vibra em outro rumo, buscando outros caminhos, para as nações e filhos que agasalha, com sua natureza, seus símbolos, suas magias e seus delírios, em um espaço por excelência cultural, profano e sagrado, dentro de uma cosmovisão mais ampla, que possa albergar os vários sentidos e os vários mitos.

E foi como filha desse continente que recebi de um passarinho, quem sabe de uma jandaia, um mito que precisava ser desdobrado, entendido, revisado, continuado...Não, eu não sou uma estudiosa e especialista em mitos, mas como mestiça americana e brasileira, e como tantos outros americanos e brasileiros, posso por eles ser inspirada. Nessa época de muitas transformações chegou-me o romance Iracema, de José de Alencar. Muito mais que um mito, um romance dentro de uma dada estética, estudada, buscada, compreendida, como romantismo indianista, ora como prosa, ora como poesia, mas que tem também uma estrutura mítica, talvez mais no sentido luso, ou de cantigas medievais, como alguns estudiosos do tema chegam a comparar. Não pretendo me alongar nesses aspectos, já que não sou especialista no assunto e nem teria condições de acrescentar muita coisa aos inúmeros estudos sobre a obra, que é um clássico brasileiro.

 Confesso, e não sei se com alguma injustiça, que o romance Iracema, sempre  me incomodou, mais do que me inspirou, desde a adolescência. Sendo cearense, e o romance tratando do surgimento do próprio Ceará, com o tema da miscigenação, não gostava de adjetivos tais como "selvagem", que permeavam toda a leitura, e de uma certa exposição de valores, já que a obra é de um romântico, mas de valores muito conservadores. E, considerando o romantismo do autor, que o impelia para a busca de unidade entre natureza e civilização,  percebia que a natureza aí era confundida com os indígenas, e a civilização com os portugueses, negando a cultura e civilização indígenas.  Uma nota também para a linguagem de dicionário tupi, alegorizando a toponímia da Província do Ceará, um pouco difícil para quem ainda não tinha sido iniciado nessa língua, mas reconhecendo também a tentativa honesta do autor de se aproximar de uma linguagem que apresentava os símbolos dessa cultura.

 Sempre busquei, quando lia Iracema, a poesia que falavam os seus estudiosos e que deveria se derramar nas metáforas e imagens poéticas da natureza, que hoje eu percebo e vejo em alguns textos literários, escritos  em português por vários indígenas brasileiros. Essa poesia que se derrama em outros textos de indígenas, me parecia no romance Iracema, truncada, cortada, como se estivesse bloqueada. Em essência ela era também cristianizada, inclusive pela escolha do final da história, onde o português colonizador volta com o filho da miscigenação e são todos batizados nos ritos cristãos, inclusive os indígenas. Tratava-se de uma supressão cultural, da cultura indígena, e de nossa parte mestiça não reconhecida ou não querida.

O fato é que essa supressão cultural, ou tentativas disso, existiu historicamente e ainda existe. E para ser justa, o autor com seu feeling romântico provavelmente a captou, a partir do próprio exílio, de uma ansiedade coletiva em que ele era inscrito, onde talvez os mestiços brasileiros e americanos não soubessem o que fazer com duas partes divididas em si mesmos, um tanto ainda à mostra.  Mas, é importante saber que existe a possibilidade também de recontar esse mito a partir de outra cosmovisão, e a partir de nossa parte mestiça, que agora reclama sua ancestralidade. Talvez muitos queiram isso atualmente, e  o próprio autor  se vivo fosse, nas atuais circunstâncias históricas, com sua sensibilidade romântica, tocado por toda essa ebulição, poderia nos ajudar nessa tarefa.

 Quando no final da história o autor encerra o texto com a frase: Tudo passa sobre a terra, ele dá o tom do mito - uma concepção ocidental de mito, que se encerra em uma linearidade histórica. Na visão cosmogônica do Mito, das culturas indígenas, o mito deveria ser finalizado com a possibilidade do recomeço, do eterno retorno: Tudo retorna sobre a terra. E é nessa visão cosmogônica do Mito que podemos refazer o itinerário do mito Iracema, continuando-o, ou melhor dizendo, retornando a ele, mas sem pretender descaracterizá-lo como literatura e com sua função literária e histórica. A outra particularidade desse mito está no nome Iracema que é o anagrama de América. Por algo a jandaia cantou, apesar de no livro de José de Alencar ela ter deixado de cantar o nome Iracema.

Para quem não conhece a obra completa vou direcionar a um endereço onde se pode ler on line ou fazer download.(1) Fiquemos, entretanto, com o resumo, e com a possibilidade que cada um pode ter de fazer sua própria reconstrução do Mito. A obra que gira sobre o tema da miscigenação conta a história do encontro do português Martim Soares Moreno com a índia tabajara Iracema. Um amor quase impossível, porque ela era filha do pajé e um tipo de vestal da sua tribo - sacerdotisa que entrega sua virgindade ao Deus tupã e obtém com isso o segredo do licor da jurema. Licor este, "bebida alucinógena", que protege a todos e é um elemento fundamental da cultura e da religião da tribo.

 Encontram-se ao acaso na floresta, e ao feri-lo com sua flecha Iracema leva "o guerreiro branco" para sua aldeia para tratá-lo, e descobre que ele é aliado de uma tribo inimiga - os potiguaras. Em meio aos problemas e lutas entre tribos indígenas e colonizadores, Iracema e Martim se apaixonam,  e ao não poder tê-la como mulher porque ela ou ele morreria por trair o compromisso da virgindade de sacerdotisa consagrada a Tupã, ele recorre ao Licor da Jurema para dormir, e então, sonha que ela está em seus braços. Sem Martim o perceber, sob o efeito da Jurema, Iracema estava na realidade em seus braços. E quebrando seus votos de virgindade Iracema não se sentiu mais digna de sua tribo, partindo com ele do sertão, e indo morar sozinhos com o amigo-irmão Poti, no litoral.

  Apesar do grande amor que os unia, Martim sentia as saudades da pátria, Portugal, e Iracema sentia-se desterrada de sua tribo e família. De sua união nasceu um filho. Mas o nascimento do filho, que é o primeiro brasileiro miscigenado, é difícil. Enquanto Iracema espera seu rebento é abandonada por duas vezes, ficando solitária, enquanto o guerreiro branco viaja para as lutas, entre tribos e colonizadores. Iracema pare o filho sozinha, um filho que chama de Moacir, que quer dizer "parido da dor". De tão fraca, quando Martim volta, Iracema só tem tempo de entregar-lhe o filho e desfalecer. É enterrada sob um coqueiro de sua predileção e lá fica a jandaia, sua companheira de toda a vida, cantando o nome Iracema.

 Martim volta com seu filho e o cachorro Japi para Portugal. Mas, quatro anos depois retorna com o filho mestiço e um sacerdote cristão. Batizam a todos na religião cristã, inclusive os índios. Martim sente saudades de Iracema e dos tempos vividos com ela naquelas terras, mas no lugar onde ela foi enterrada, a jandaia já não canta o seu nome.Tudo passa sobre a terra.

Para retomar o mito de outra perspectiva, a do mestiço que somos todos nós e que tem outro lado a considerar, partimos imaginando outra volta de Martim com seu filho, fruto do seu amor com Iracema e fruto da miscigenação, que é o final do romance.Tomei a liberdade de usar algumas frases e a estética romântica de José de Alencar para tal feito, mas agora em uma acepção diferente do mito. Eis:

O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora. Moacir, filho da miscigenação, conhecia o pai, mas estava crescendo sem mãe. O primeiro cearense ainda no berço, emigrara da terra pátria. Agora chega àquelas praias onde o pai foi tão feliz. Volta à procura de algo perdido, ao reencontro da mãe. Uma parte sua reclamava.

Quando seu pequeno pé sentiu o calor das brancas areias, em seu coração derramou-se um fogo que o requeimou: era o fogo das recordações da ancestralidade que ardiam como centelhas sob as cinzas. No pequeno coração ardente sabia-o, não era somente filho do "guerreiro branco", pois uma voz de longe ainda podia ser ouvida. Era Iracema que se despedia de seu amado:Quando o vento do mar soprar nas folhas. Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos. Era filho daquela voz que vibrava com os ventos. Era filho daqueles ventos que roçavam pelos cabelos da virgem Iracema. Moacir não era filho da dor, pressentia-o, era filho do amor, do amor que tudo une e que tudo liga. Era fruto da paixão sofrida e curada com a flor do maracujá, a flor do coração.

Foi, então, ao pé do coqueiro onde jaziam os restos mortais da filha de Araquém, e ouviu o ressoar plangente da ave amiga. A jandaia que não abandonara sua senhora, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Repetia outro nome: América.

Encantado com aquela ave bela, o pequeno Moacir repetia América, e ao dizê-lo via o vulto de Iracema, mais rápida que a ema selvagem, correndo o sertão e as matas do Ipu onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. E cada vez que via a jandaia tinha novas visões de Iracema correndo pelos campos, que agora já acreditava ser a América. A terra para ele já era a própria Iracema, a carne e a cinza de seus antepassados, a terra para ele era agora sagrada.

A Jandaia o acompanha, a graciosa ará, companheira e amiga de sua mãe, brinca junto dele. As vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama o nome: América. Como a mãe, Moacir já inclina o ouvido sutil aos suspiros da brisa. Todos os ligeiros rumores da mata tem uma voz para aquele pequeno filho do sertão e das florestas. O novo filho mestiço da América já escuta as vozes dos seus ancestrais, segue a rota dos astros e o florescer dos cajueiros.Vai crescendo ao lado do "guerreiro branco", ouvindo as histórias dos mares bravios e das tormentas, ouvindo os mitos à luz das estrelas e das luas, e palmilhando as terras, os lagos, os mares, como o corpo de sua mãe América, com o mel dos lábios de Iracema, seu hálito mais perfumado que a baunilha, seu sorriso doce como o favo de jati e seus cabelos mais longos que seu talhe de palmeira. Carrega o masculino e o feminino que juntos construirão a nova terra prometida do arco-íris. Novas cidades serão erigidas como árvores, todos os mitos serão acolhidos, as terras serão plantadas por todos, e para todos retornarão os seus frutos, fraternalmente e em paz.

Moacir, o filho da miscigenação, reencontrou  sua mãe, a América, que o esperava desde que Iracema partiu. O chamado de Iracema nos vem, com a jandaia que repete ainda sem cessar no olho da palmeira onde ela jaz: América! América... Tudo retorna sobre a terra.

 De fato, um final em que há uma ressurreição. Final despertado pela jandaia, quase um espirito ou mana de nossos ancestrais, e que talvez ficasse em melhor composição literária e romântica se feito pelo grande escritor que foi José de Alencar. Mas, com sua licença poética, pudemos através da reconstrução do final do Mito, e ainda utilizando sua estética, resgatar a parte feminina coletiva, que ficou perdida em nossa ancestralidade, suprimida e soterrada, como foi relatada através do feeling romântico do autor. Com o resgate do feminino na figura de Iracema, agora América, é resgatada também a relação com a natureza e com o sagrado em uma outra cosmovisão. Os filhos mestiços de Iracema - todos aqueles que carregam em si o pequeno Moacir, antes filho da dor, agora filho do amor - podem dar continuidade ao mito, em outro plano, no amálgama das culturas e cosmovisões, na reconstrução de novos paradigmas civilizacionais na América. Brasileiros filhos deste continente, no caminho para rompermos mais de cem anos de solidão, de nossas origens divididas, não aceitas e desencontradas, estamos renascendo para esse novo mundo americano!

Para essa reconstrução seremos chamados também a destruir. Destruir um modelo de desenvolvimento pernicioso que gera cidades gigantes, desumanas e "feitas para odiar". Um modelo de desenvolvimento que gerará cada vez mais conflitos e má distribuição de recursos materiais e naturais entre campo e cidades e entre países e nações de nosso continente. Um modelo de desenvolvimento que sangra os trabalhadores dos países de nosso continente, para pagar dívidas externas vultosas em favor de setores pequenos da população e sob o signo e idéia do crescimento econômico. Esse modelo de desenvolvimento deverá vir abaixo, para que possamos acolher todos os nossos mitos e os novos paradigmas de civilização.

Adentrar nessa recuperação dos mitos, de cosmovisões, de entrelaçamento de culturas na América, é entrar nos seus mistérios e na construção de um novo ser humano. E como diz a conhecida poesia do poeta inglês John Donne, fazendo paralelo entre a mulher e a América:

Minha América! Minha terra  à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
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Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um(a) que sabe;

Quem sabe? Será que alguém mais se aventura?

 

 

(1) -Iracema - de José de Alencar
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf

 

 

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda 

27 de outubro de 2006

 

Publicado também em A Fala - www.cepac-ce.com.br

 

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