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(Um olhar sobre a cultura)

 Algo novo no Brasil está nascendo, você não percebeu?

(Veja Arquivos)

Ao som de tambores, maracas, e do vento em bandeiras vermelhas tremulantes pelo país afora, a mídia anunciava e deturpava, chamando de "caos", selvageria e outros depreciativos, o movimento dos indígenas, dos Sem Terra e também dos Sem Teto, que ficou conhecido como Abril Vermelho. Preferi me concentrar nos sons, nos Torés, nas bandeiras, no movimento em desfile e brados pelos caminhos do Brasil, e um filminho de cenas passadas vieram à tona.

Primeira passagem: No inicio dos anos 80, do século passado, estava com um grupo de pesquisadores, no Sertão Central do Ceará entrevistando antigos sindicalistas rurais perseguidos pela ditadura militar em 1964. Dos entrevistados, um deles contou o suicídio de um vizinho, trabalhador rural da diretoria do sindicato rural, perseguido pela polícia, que insistiam que ele contasse o que não sabia ou não tinha para contar. Outro entrevistado, que havia pertencido à primeira diretoria do Sindicato de Trabalhadores Rurais, de um município do Sertão Central, falou que foi preso, pressionado e que acabou ficando amigo do superintendente da policia federal. Este o entrevistou várias vezes, e percebeu que ele não sabia nada do que estava acontecendo no Brasil e muito menos, pelo que nos contou, entendia o significado dos sindicatos rurais implantados no governo João Goulart. Isso denota, por um lado, o quão incipiente ou ausente era o movimento político organizado e significativo no campo cearense, nessa década e conjuntura política.

Segunda passagem: No fim da década de 70, do mesmo século, participando de um projeto de educação popular, com um grupo, na periferia de Fortaleza, fomos convidados a fazer uma reunião na casa de um casal recém chegado do interior. Expulsos do campo, por falta de condições de sobrevivência, instalaram-se em um dos lotes novos cedidos pelo serviço social do município, já que essa era uma área da periferia da cidade que recebia desfavelados, e expropriados de terras. Lá, ergueram uma pequena casa, que destoava um pouco das outras.Tinha um pequeno alpendre, com carnaúba, como as casas do meio rural. A área da periferia loteada, onde moravam, era cheia de carnaúbas e o terreno um tanto pantanoso ou encharcado.O casal, já não tão novo, parecia um pouco órfão e tinha uma certa inocência e receptividade, de pessoas que não tinham sido ainda contaminados pela malícia, crueza, e por que não dizer, pelo egoísmo e individualismo da vida urbana e periferia. No final da reunião a mulher levou-nos para conhecer a parte de trás da casa, onde a cozinha era um pouco aberta, com uma pequena varanda e de onde se via um carnaubal, que ainda não havia sido loteado, e disse para nós: Quando eu sinto saudade lá das minhas terras eu venho aqui olhar essas carnaúbas. Naquele dia voltei para casa triste, pensando na violência a que eles estavam sendo submetidos e a que se submeteriam ainda mais, quando tivessem que fechar a varanda da cozinha e o alpendre de carnaúba da entrada. Não demoraria muito e as carnaúbas da paisagem vista do seu quintal seriam loteadas e derrubadas, e eles aos poucos entrariam no ritmo da cidade grande e periferia, e se veriam privados daquilo que representava a vitalidade vinda da relação que mantinham com a terra, com sua cultura, seus costumes e valores. Arrancados de seus pontos de referência.

Terceira Passagem:Ainda no século passado na década de oitenta, entrevistando pequenos produtores em um assentamento de reforma agrária, uma camponesa contava-me o conflito que houvera na fazenda desapropriada, o assassinato de seu marido e filho, e como ela e uma vizinha amiga tiveram que sair por dentro dos matos, escondidas, e caminhar léguas e léguas, do sertão de Canindé até a pequena cidade serrana de Aratuba onde havia um padre da teologia da libertação, em quem confiavam, e que poderia lhes socorrer. Não foram ao sindicato dos trabalhadores rurais mais próximo, o que denotava a fragilidade, então, dos próprios sindicatos rurais, mesmo que eles institucionalmente fossem os mediadores dos conflitos de terra.

Quarta passagem:É o presente do Brasil,explodindo em caravanas, ocupações de terras, reivindicações, articulações dos movimentos sociais, ocupação da mídia, ainda que muitas vezes de forma deturpada, criação de mecanismos de divulgação próprios e articulados.

Essas passagens, em que subjazem as contradições da sociedade em que vivemos e que refletem por um lado a crueza e violência da expulsão e expropriação de camponeses de suas terras, denotam também a diferença entre os movimentos sociais no campo brasileiro na conjuntura em que se instalou no Brasil a ditadura militar de 1964 e agora. A expulsão de pessoas do campo continua e de forma acelerada, mas agora elas não têm lugar também nas cidades. Lugares estes que se tornam cada vez mais inóspitos para os expulsos do campo, sem emprego, sem teto, sem referenciais para a vida. As estradas estão cheias de acampamentos de pessoas que não têm para onde ir se não for realizada a tão prometida e não concretizada Reforma Agrária.

Sim, a mesma Reforma Agrária que se pretendia fazer em 1964 quando adveio a ditadura. E aí vêm as comparações e considerações fragmentadas sobre a Reforma Agrária:"Olhem, aprendam a lição do que ocorreu em 64. Cuidado com a radicalidade!" E, estranhamente, ao mesmo tempo em que culpam os movimentos sociais e de esquerda por algo que eles não foram responsáveis, como a ditadura militar, dizem que é necessário o protagonismo do povo brasileiro para que ocorram as mudanças. Parece-me que as elites e todo governo que se instala no país tem um figurino próprio para o povo se comportar, e, às vezes, bastante contraditório. Além disso, querem perfeição. Os movimentos sociais devem ser perfeitos, se comportar bonitinhos dentro da ordem, senão a mídia estampará manchetes de "bárbaros", "selvagens". Além disso, não sabem ou não querem diferenciar o joio do trigo, e colocam no mesmo comboio ações do MST e narcotráfico, movimento indígena e rebeliões de presídio. De repente a mídia e algumas personalidades que se intitulam de inteligentes e criativas ficaram burras ou mal intencionadas,  pois não percebem a diferença entre violência e expressão política e legítima pelos direitos.

 A conclusão lógica disso é que não existe forma possível para os movimentos sociais  se compatibilizarem com o que as elites querem e esperam dos movimentos sociais brasileiros. Em uma sociedade tão terrivelmente desigual como o Brasil, em que a maioria da população é permanentemente  expropriada das condições de vida, a um estrangeiro que chegue ao Brasil pode parecer estranho que o povo reaja de forma tão pacífica, apesar da mídia e elites fazerem um carnaval por manifestações legítimas da população em busca de seus direitos mais básicos. Manifestações pacíficas pelos direitos é algo comum em democracias mais desenvolvidas. E isso deveria chamar a atenção das elites que estão sempre no encalço do desenvolvimento de outros países. Querem ser desenvolvidos? Então sigam as "democracias desenvolvidas" no que elas têm de positivo e encarem como parte necessária a uma democracia a defesa dos direitos, e das perspectivas diferentes de desenvolvimento para o país.

Mas o diferencial, desse movimento de Abril, e que talvez tenha encrespado tanto as elites e seus porta-vozes midiáticos, é a percepção de que os movimentos sociais não estão mais preocupados com as considerações sobre suas ações ou qualquer modelo de perfeição imposto a eles. Algo novo no Brasil está nascendo, você não percebeu? Os movimentos sociais no Brasil perderam a inocência, e agora têm seu próprio vôo. Entre a situação de tutela dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais no Brasil, que sofreram intervenção na ditadura militar, e os movimentos de luta pela terra atuais há uma distância de mil anos- luz. Portanto, não cabe esse tipo de comparação com o passado. Melhor seria entendermos os processos e as mudanças. O movimento dos Sem Terra no Brasil ficou adulto, na idade cronológica (20 anos), nas ações e objetivos, na autonomia, e como alguns dizem na "territorialização".

O movimento dos Sem Terra no Brasil dá um sentimento de pertença a todos aqueles que expropriados  de suas terras e condições de vida nunca puderam ter de forma tão abrangente e real essa identificação de luta com um sindicato. É o sentimento coletivo de que os expropriados não estão mais sós, mas estão com eles e entre eles, com objetivos e, portanto, com força, porque são muitos e estão se articulando cada vez mais com outros movimentos. Há uma proposta educativa, dentro das possibilidades, que se alastra e que se coaduna com uma nova visão de vida, e de projeto de desenvolvimento para o país. E isso se chama autonomia. A dicotomia existente antes entre ser um sem terra, e um pequeno produtor com terra, por exemplo, está deixando de existir diante da territorialização do MST e da articulação com o Movimento de Pequenos Agricultores, diante dos objetivos e propostas para a agricultura em outro modelo de desenvolvimento, e que significa uma luta permanente.O Abril Vermelho, por exemplo, não é só barulho como dizem alguns cientistas sociais em jornais, mas ocorreram concretamente várias desapropriações de terras, acordos entre o MST, Governo e Incra de alguns Estados da Federação, planos, articulações do movimento e ganhos para a democracia brasileira, no momento em que essa expressão política e coletiva da população, que nunca teve direito de se manifestar politicamente, ocorre e começa a ser reconhecida como legítima pelo restante da população.

Mas além desse crescimento, que se deu ao longo das duas últimas décadas e começa a dar frutos, a luta dos movimentos sociais pela terra encontraram-se  nesse abril brasileiro e vermelho em uma conjuntura e momento onde o leito das definições do Brasil -a terra, seu solo, seus filhos que são também natureza - está sendo focado no contexto mundial. Discutir a utilização da terra, sua democratização, seu cuidado, para que e para quem, é colocar um pé ereto, as linhas centrais no chão e na natureza, do que será a vocação desse nosso país e da nação, e o que ela trará de próprio e novo nesse mundo global que se anuncia. As comemorações e lutas pela terra no Abril Vermelho tiveram dois momentos que considerei simbólicos. E é importante considerar, antes de mais nada, que diferentemente do que alguns cientistas sociais vêm colocando, o simbólico não é inerte. O simbólico, principalmente em um movimento como esse, expande energias e movimentos e desloca energias também.O simbólico, quando é espontâneo e parte de um movimento, mobiliza, vai adiante pedindo realização.

 Um desses momentos foi quando, no acampamento Terra Livre (acampamento dos indígenas no Palácio do Planalto) que per se é simbólico, chegou um líder Sem Terra cumprimentou um cacique índio e fincou a bandeira vermelha do MST no chão do acampamento. Ali pareceu-me estar acontecendo o encontro de duas águas, de dois sangues, um encontro de almas, num claro instante, da união de duas culturas diferentes. Como em um dito dos próprios índios: Uma mão que vai e outra que vem. A reciprocidade dentro de uma mesma igualdade, por um objetivo comum, que ainda não ficou esclarecido de todo. Encontro possível pelos objetivos próximos, de cuidado e utilização democrática da terra, autonomia e cabeça erguida na luta pelos seus direitos, de respeito interétnico, e de um modelo de agricultura diferente que selem as possibilidades da grande vocação do Brasil, no contexto global do planeta ou na república planetária que se avizinha. Algo que diz respeito à vocação do Brasil como nação pluriétnica, pluricultural e orientada na biodiversidade.

O Brasil não terá condições de ser um dos primeiros países na escalada das viagens planetárias, nem terá a bomba atômica mais poderosa, mas poderá ser um celeiro da biodiversidade e da diversidade e riqueza cultural. E isto ocorrerá se os movimentos sociais e as cabeças esclarecidas, que porventura aparecerem  nos governos, fincarem pé na luta por um modelo de desenvolvimento econômico-social que possa unir essas duas riquezas que nós temos. Os Índios podem se encontrar com os Sem Terra  e pequenos produtores rurais em suas lutas e objetivos, enquanto um projeto de nação, naquilo que proporciona o leito por onde correrão nossas águas, onde estarão as bandeiras e os pés fincados.

O segundo momento simbólico foi quando os índios ocuparam a Câmara dos Deputados em Brasília. É como se aquela representação dos políticos, que durante todo esse tempo de governo Lula estiveram votando grande parte das medidas que não levaram às mudanças necessárias e esperadas pelos índios e pela maioria dos brasileiros, começasse a se esvaziar ou perder sua vitalidade. Simbolicamente os índios ocuparam o salão verde do congresso. Parece que ocuparam o coração do Brasil, ou colocaram as peças do quebra-cabeça em seus devidos lugares. Ocuparam simbolicamente um lugar onde sempre deveriam estar. Parece agora que as discussões no Congresso não serão o mais importante e vital nesse processo brasileiro.

A terra, os índios e os movimentos sociais ligados à terra ganham agora uma dimensão especial. É hora de fincar as linhas mestras da vocação desse país, no que diz respeito ao seu solo, sua terra, modelo de desenvolvimento que comporte a biodiversidade, e respeite as diferenças étnicas, culturais e as necessidades da maioria da população. Um primeiro passo está sendo dado pelos movimentos sociais. É de se esperar e se desejar que a luta continue firme e que possam se encontrar as águas desse nosso solo e cultura, que tornem-se um grande afluente  de almas, fluindo sem muitas pororocas.

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda 

26/04/ 2004

 

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