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Contando um conto |
Eu e os outros eus (meus ou seus?) |
Abriu-se a porta, um homem
baixo, ou seria de estatura mediana? De repente parecia muito alto. Convidou-a a entrar
gentilmente. Já sentados, olho no olho, era outra pessoa. Um tanto ofegante, não tinha
mais a calma com que a recebeu. Parecia-se com outra pessoa. Agora já era um pouco
moreno... E não era pouco não, era até muito moreno. Estranho!
Pensou imediatamente no conto infantil A Moura
Torta.Para quem não conhece e não lembra do conto, a Moura Torta era
escrava no palácio de um rei. O rei à procura de uma rainha, e quando finalmente conhece
a linda donzela que iria desposar, deixa-a às margens do lago onde a conhecera e volta ao
palácio para vir acompanhado de seu séquito com bandas e fanfarras, para levar ao
palácio a nova rainha com todas as honrarias. A Moura Torta chega e vendo-a, através de
um sortilégio transforma-a em um pássaro e toma o seu lugar. Quando chega o rei com seu
séquito e vendo a Moura Torta no lugar de sua rainha pergunta: Mas você não era
mais branca? Ela responde:
Mas também o que você queria? Com o tempo que fiquei
esperando ao sol...!
Enquanto
conversava, a estória não saía de sua cabeça. É bem verdade que naquela sala pouco
iluminada não havia sol. E como ele podia mudar de cor em poucos segundos?Tudo muito
irreal. Despediu-se com aquela imagem, que não teria sempre à sua frente. Outras e
outras imagens em uma mesma pessoa desfilaram diante de si, nos demais encontros que se
seguiram. Ela se perguntou: Seriam os outros eus? E se fossem, seriam meus ou seus? Algumas vezes apareciam os mesmos olhos, os mesmos olhos que dizem a terra há de comer. Mas aqueles não, a terra não podia comer. Vinham e sumiam e assumiam cores e brilhos diferentes. Parecia outra pessoa. Mas ali estava... Um mesmo nariz, um mesmo pescoço. O braço não...O braço parecia mais fino, naquele dia.
E
naquele outro dia... Que ele parecia que estava fantasiado. O cabelo arrumado com gel,
estilo pica-pau, seus olhos maiores e claros pareciam torneados de lápis preto. Primeiro
pensamento que lhe veio à cabeça: Parece teatro do improviso. E se nada daquilo
fosse real? Apenas uma miragem? Projeção
holográfica de uma mente que caminhava para o transpessoal? Dúvidas...Dúvidas e mais
dúvidas de um intrincado caminho.
Aos
poucos, por um certo tempo, aquilo parecia divertido. Assim como um baile à fantasia, no
qual a retirada das máscaras pode acabar com a festa. Enquanto os encontros se sucediam e
eram trocados os personagens, na dança da ilusão, ela se ouvia cantando pra ela mesma,
com a Rita Lee: Meu bem, você me dá água na boca...Vestindo fantasias...
Além
do cabelo, do corpo, dos gestos, a voz, às vezes, parecia diferente. Impostação? Mesmo
que fosse, a forma de falar mostrava outra pessoa. Vinha-lhe à mente a propaganda do tal
xampu: Você se lembra da minha voz? Mas o meu cabelo quanta diferença...Mas
ao que parece aquela experiência além do cérebro, não se compatibilizava com os
recursos da mídia, ia além da mídia. Pois até a voz de uma pessoa poderia ser mudada
ao ser acessado um outro eu. A pergunta central era: Esse outro eu, é um eu transpessoal,
ou um eu substituto, de carne, osso e voz única e natural que Deus lhe deu?
Passou
a buscar nas ruas, com os olhos - sem querer ser detetive, e duvidando da própria dúvida
- aquelas dentaduras a sorrirem de formas diferentes, aquelas mãos maiores, menores e de
diversos formatos, os pés ...Ora descontraídos, ora formais, ora pequenos, ora grandes.
Uma miscelânea de corpos em tamanho e largura. Lembrou-lhe a estória do crescedor
contada no interior do Ceará. Estórias, que diziam, era invenção de matutos.
Agora já sabia. Invenção coisa nenhuma, era tudo experiência transpessoal.
A
estória do crescedor, para quem não sabe, era a de um bebê que aparecia à
beira das estradas, chorando dentro de uma cesta, e ao se aproximar alguém ele começava
a crescer. Depois de aparecer a primeira vez, aparecia ao longo da estrada, por
diversas vezes, crescendo aos poucos até se tornar um gigante. Assim como a experiência
que ela tivera, nessa também ficava difícil dizer se os crescedores eram fantasmas da
própria pessoa, ou se eram verdadeiros.
Fantasmas
coletivos tornam-se lendas, compartilham-se entre todos, amenizando a tortura psicológica
da dúvida, que pode surgir no caso de uma relação única e transpessoal:
E se eu
estiver enlouquecendo?
Perguntas
como essa deixaram de ser tão importantes e de importuná-la, quando ela começou a ver,
o que inicialmente pensara que eram visões. Ele (ou um deles) estava em um bar
de esquina, com a namoradinha. Usava a mesma roupa do encontro transpessoal, do que ela
pode perceber que no encontro transpessoal a roupa não muda. Podem mudar expressões,
cores, mas a roupa continua a mesma.
De
longe seu olhar fuzilou-a e tratou de virar-se para não ser reconhecido. Medo de ser
reconhecido como o eu, ou como um outro eu? Depois, ao passar por outros
bares, ali estava outro eu, com a mesma camisa de um dos encontros transpessoais. Eles
deveriam ter mais roupas! Um eu, menos medroso e cínico, diria. Ele chegou a rir de
longe, de tal coincidência, confiante que era na confusão mental dos mortais. Ela o
imaginava pensando: Tudo isso é ilusão.
Mas,
as dúvidas diminuíam, e os sentidos dela já captavam o sentido imposto da
transpessoalidade. Um carro passou pelo táxi em que ela ia. Dirigindo o carro ia um outro
eu, inconfundível em seu sorriso, às vezes cínico, e seu boné. Sua
expressão foi captada, por ela, através de óculos escuros infravermelhos. Ele tinha a
expressão de quem diz: Ela não sabe que eu sou um outro eu.
Desconfiada
da materialidade cotidiana daqueles eus transpessoais não se irritou, apesar de que teria
gostado de dizer nas suas caras: Farsantes! Pensava em todos os rostos, em todos
os gestos, nos nós desatados, nas dores, nas alegrias daqueles encontros transpessoais.
Quantos eus ela ainda teria que conhecer, quantos eus compartilhariam
daquela fraternal e escondida descoberta dela pelo caminho transpessoal. Quantos seriam
reais, quantos seriam dele e quantos dela? Quantos eus ela ainda encontraria
pelas esquinas, escondidos sob o manto da transpessoalidade?
Depois
de um certo tempo e da convivência com muitos eus, ela resolveu parar com
os encontros transpessoais para refletir.
A questão se resumia em ética. A
pergunta era: A transpessoalidade ultrapassa e desfaz os
liames dos valores vigentes neste mundo de muita ilusão, e da nossa ética? Que
significado teria para o mundo transpessoal conviver com um eu, dois eus,
três ou mais eus? Ficou-lhe, entretanto, uma dúvida: Se não seria antiético esconder de todos esses eus, farsantes ou não, que ela sabia de tudo isso. ----------------------------------------------------------------------------- Este conto naturalmente é uma ficção. Mas é baseado em uma experiência transpessoal de uma amiga minha. Depois de me contar tudo em mínimos detalhes, ela me pediu para eu não contar para ninguém. Eu concordei...Pois quem acreditaria nesta estória? |
Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 19/maio/2000 |
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