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De Unhas Pintadas...

Enquanto começo a escrever o que imagino seja por fim a derradeira crônica desta seção, me vem a lembrança o filme Cria Cuervos  de Carlos Saura, que assisti no final dos anos 70 (século passado). Um filme sobre a infância conturbada, mas sobretudo solitária de uma menina, que vive  seus fantasmas e medos, enquanto sua família se desagrega, tendo como pano de fundo a ditadura Franquista na Espanha. Apesar  dos comentários e estranhamentos sobre a abordagem realista de Saura, em que ele retira a idéia que se passa sempre da infância, como um tempo de felicidade, e que é influenciada até pelas circunstâncias políticas do momento, o filme trata principalmente da solidão que vive a criança antes de sua socialização e da incompreensão de seu mundo de fantasia, próprio, que reage às duras formas de adaptação à realidade que a circunda. Às vezes muita coisa estranha a si para assimilar e a dificuldade de deixar muito do que é natural, sua própria natureza e fantasias de seu mundo interior. O filme que mostra o relato da menina já adulta, relembrando os momentos passados, funciona como uma oportunidade daquelas memórias serem integradas para sempre.

E assim também a menina da aldeia ou pequena cidade, com cheiro, húmus e neblina de tempos coloniais  vivia seus momentos de medo e resistência à saída de casa para o colégio e socialização. Muito já era exigido em coisas que sua natureza não suportava: sapatos que apertavam os pés, roupas engomadas, com anáguas que espetavam, cabelos cacheados que lhe custavam sacrifícios por ter cabelos lisos. Sua natureza agreste e livre sofria. Não nascera para ser domada. Imaginava-se com roupinhas soltas de algodão, cabelos ao vento e pés descalços  correndo livre, mas com um detalhe: pintadinha de rouge e batom. Assim vira as meninazinhas da localidade rural que vinham para as festas religiosas na cidade.  Dissera: Mamãe, eu quero passar baton e rouge, como aquelas menininhas. Criança não se pinta, não se maquila, foi a resposta. Você quer ficar parecendo uma "cunhãzinha" ? Queria, mas não podia. As interdições eram muitas naquela vida difícil e presa. Começou a ser infeliz. Melhor era ser uma "cunhãzinha" e era.

Assim, foi uma saída bem difícil para o jardim de infância, com muitas regras no colégio religioso. Mais regras difíceis para sua natureza indômita que sofria. Tantas coisas novas e difíceis de entender. Não queria nada, nem merendar. Somente voltar para casa e para sua solidão. Terminou o ano com uma cara amuada na foto de doutoranda do ABC, das primeiras turmas de jardim do recém fundado colégio, mas participou da festa de diplomação sabendo que chegara à meta que todos queriam. Vivia tudo aquilo com muita dificuldade, uma obrigação, um teatro que tivera  que encenar.

 Apenas assinava o nome e ainda não lia, mas ganhara uma revista em quadrinhos, do Bolinha e Luluzinha e pedia a todos que lessem para ela. Ninguém tinha tempo e a irmã mais velha,  que dizia já saber ler, fazia chacota: Nem sabe ler...Nem sabe ler. Sentava-se sozinha com a revista e criava várias histórias diferentes para os quadrinhos e depois a guardava cuidadosamente esperando, enfim, o dia que aprendesse a ler.

Começava a alfabetização e com ela a esperança de mudanças. Já ficava sozinha em sala de aula, mas muito arredia. De repente, uma coleguinha que sempre a procurava para conversar sentou-se à sua mesa e ela verificou algo diferente: Tinha as unhas pintadas. Aquilo pareceu interessante. Não era rouge e batom, mas eram as unhas pintadas. Perguntou: Quem pintou suas unhas? A coleguinha percebeu o interesse e disse: Fui eu. Tenho esmalte em minha casa. Você quer pintar as unhas? Sim, eu quero. Então, quando terminar a aula vamos comigo lá em casa e eu pinto.

Mal terminaram as aulas e saíram correndo à casa da colega. Ela na maior expectativa para pintar as unhas, a colega pouco preocupada, só queria que ela ficasse para brincar. E aí percebeu que a coleguinha era também muito só. Sua mãe em cadeira de rodas e um irmão um pouco arredio, seu pai falecido. Enquanto a colega animada ia lhe mostrar sua casa, sua mãe, seu quarto, seus brinquedos, ela perguntava: E o esmalte de unha. Cadê? E ela desconversava. De tanto perguntar, já aflita, porque sua babá devia estar no colégio à sua procura ela respondeu finalmente: Não, o esmalte de unha não é meu. Foi a vizinha quem pintou minhas unhas. Bom, já estava ali e não ia mesmo desistir e disse: Vamos na vizinha para ela pintar minhas unhas! Ela então a acompanhou e pediu a vizinha. Mas ela desconversou e disse que não tinha mais o esmalte. A menina da aldeia percebeu, então, que o esmalte foi apenas  um motivo para a colega a carregar até sua casa. Havia solidão em sua vida, assim como também na sua. Seus mundos eram solitários buscando cores vivas,  comunicação, compreensão, vida. Enquanto sua cabecinha ia percebendo tudo isso a babá chegava espavorida buscando-a, porque não a encontrara na escola. A busca pelas cores que pintasse a solidão e desse um colorido aos dias difíceis tornou duas coleguinhas amigas.

Voltando à casa exigiu um esmalte para as unhas. Esmalte sim, era possível, apesar das resistências. A partir daí pintou as unhas, juntava moedinhas para ter seu esmalte de unhas, até chegar a adolescência, como um carimbo de conquista de sua própria liberdade. Na escola foi um ano promissor: Aprendeu a ler e lia tudo com prazer. Várias vezes sem conta leu sua primeira revista em quadrinhos. Sua primeira cartilha "As Mais Belas Histórias" a entronizou nos contos do lobo e os três porquinhos. No final do ano por bom desempenho ganhou, no colégio, seu primeiro livro de estorinhas com três estórias: A Rainha das Onças, a História de João Barandão e a Boneca de Cera. Seu passaporte para o mundo imaginal, que lhe abriu o reino dos contos de fadas e acabou para sempre sua solidão de menina. Sua socialização por fim começou  e várias vezes foi convidada a brincar na casa da nova amiga. Agora, de unhas pintadas.

As memórias afetivas dessa época vêm lembrar, entretanto, que há sempre uma solidão inextinguível, própria, que só o próprio mundo imaginal é capaz de acolher.  As unhas agora raramente são pintadas, mas há algo  que ela sabe com certeza:

"Dentro de mim mora um anjo

Que tem a boca pintada

Que tem as unhas pintadas

Que tem as asas pintadas..."

(Fragmentos de Dentro de Mim Mora um Anjo - De Cacaso e Suely Costa)

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Para minha amiga de tenra infância Ana Maria.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda -29/01/2019


Aqui você me encontrará sempre com o cotidiano, com o prosaico, com o divertidamente humano, com o essencial que está presente em nossos encontros e desencontros do dia-a-dia. Aqui você me encontrará cronicando.                             


 


Plano de Fundo: De Unhas Pintadas -Bijoux -Oferenda. janeiro/2019


Música de Fundo: Por que te vas. Jeanette.

Trilha sonora do filme Cria Cuervos de Carlos Saura (com Internet Explorer)


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