PRINCIPAL

CRONICONTO

GALERIA

PEPEGRILLO

MOMENTOS

MURAL

CULTURA


Contando um Conto

 
Um dia de descida

Em um dia desses de descida, daqueles em que você toma o elevador, e sem querer vai parando em andares errados, a convite de meu marido resolvi sair com ele e um grupo de amigos. Algo me dizia que melhor era ficar em casa, ruminando as idéias, filosofando sobre uma vida não existente, planejando o futuro sideral, ou o dia do encontro do macaco com o E.T. Todas essas coisas que nós pessoas fazemos, quando não temos talento como João Gilberto(???)¹ para fazer um samba de uma nota só.

Mas, fazendo um esforço para não ficar isolada, lá me vou... Mil pensamentos, euforia de encontrar alguns amigos que não via há tempo, muita conversa para atualizar, mas não conseguia me desligar de um texto que havia lido recentemente: Uma visão junguiana de Édipo...E Jocasta. E não sei como, quando percebi já estava animadamente falando para todos da tal abordagem de Édipo, parece-me que muito importante pra mim naquele dia.

Dizia que o complexo de Édipo era como um miasma, disseminava-se por gerações, de pais para filhos e netos. Um amigo meu com ar irônico disse: Então, agora temos que cantar aquela canção do Cazuza de forma diferente. Em vez de cantar:Você já dormiu com sua mãe?... Deve-se cantar, você já dormiu com sua mãe, com sua avó e bisavó...?

Pensei ih!, parei no andar errado. E fui logo tratando de mudar de assunto. Mas aquele não era um dia para encontros, porque percebi tarde demais que estava no meio de outro assunto, no mínimo polêmico.

Abordava as relações sexuais, defendendo um novo approach para a questão. Nas relações heterossexuais as mulheres deveriam conferir uma dinâmica mais feminina ao ato sexual. Por que as relações deveriam convencionalmente partir de preliminares ao intercurso e ao descanso final, e assim sucessivamente, quando isso era baseado na sexualidade masculina? A sexualidade feminina era muito mais anárquica, comportava outra dinâmica, onde a relação poderia começar com um orgasmo, ou com um descanso quem sabe, e se repetir indefinidamente, com falo e sem falo, etc. Além do mais era bom que não esquecessem, a mulher podia ter orgasmos múltiplos...E quando cheguei nesse ponto percebi que estavam todos olhando e quietos.

Pensei, diabos, tem alguma coisa errada! Fui olhando devagarzinho...As mulheres tinham olhares assustados de quem diz: Louca, será que ela quer que eles nos linchem! Alguns dos rapazes tinham um olhar furioso, como a dizer: Perigosa e atrevida! Cassemo-la! Outros tinham um olhar de quem não havia entendido, principalmente quando falei de orgasmos múltiplos.

Falei comigo mesma: De volta para o elevador! Hoje não parei no andar certo umavez. E foi pensando nisso que me ocorreu o outro assunto: O teletransporte. Porque com ele talvez não tivéssemos tanto problema com elevadores.

E, de repente, já me vi toda animada falando da invenção revolucionária e futurista. A grande solução para as cidades, uma vida para outra dimensão. Só pensar nas ruas livres de trânsito, para os pedestres andarem a vontade, com lugares cada vez maiores para parques, árvores, verde, caminhadas, encontros e até exposições de artes nas ruas.

Que ruas? Minha nostalgia já passeava pelos bulevares de antigamente, quando as cidades brasileiras queriam imitar Paris.  Tudo era  mais humano, mais natural, mais orgânico, menos cimento...Abaixo  Le Corbusier. As pessoas passavam e diziam bom dia... Boa tarde... Obrigado... Tão gentis, tão sem pressa. Além disso, no futuro, com teletransporte poderíamos dizer: Quero fazer compras? Vou a Nova Iorque e volto daqui a pouco; hoje vou passar a tarde no museu do Louvre. Tudo facilitado pelo teletransporte, que teria postos em toda parte, como uma cabine  telefônica.

Estava tão animada com meu discurso, que quase me levantava da cadeira. Saio um pouco do meu quase transe e olho para as pessoas. Algumas meneavam a cabeça, como a dizer: Está delirando! Um amigo questionador, que topa todo e qualquer assunto olhou pra mim e disse: Sabe do que eu estou me lembrando aqui, do filme do homem mosca.Você já pensou no risco que a gente corre com esse teletransporte ? Se ficar uma perninha ou asinha de mosca nessa cabine, já viu no que a gente se transforma? E se entrar outro bicho? E desfilou com uma quantidade absurda de animais em que poderíamos nos transformar.

 Parei cansada. Estava desistindo daquela noite. Sentia-me como uma mulher mosca comendo uma batata frita. Podia até sentir uma gosma enquanto comia e pensava naquela possibilidade hedionda que acabou por bloquear minha curiosidade científica futurista. Maldisse a física quântica que nos assinalava possibilidades que essa população incrédula e ignara desperdiçava. Maldisse a incompreensão dos não delirantes, daqueles que não são capazes de sair um pouquinho para passear fora da terceira dimensão. Perguntei para mim mesma: Com um elevador dessa qualidade nós teremos futuro, parando todo tempo em andar errado?

Fiquei pensando que em dia de descida não se pode tomar qualquer elevador.

........................................................................................................................

Para o leitor que está pensando : Ela é realmente delirante, eu acrescento...Só nos dias de descida.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda -11/março/2000


1- Se você pensou que o samba de uma nota é de João Gilberto errou, como eu. Esse samba é de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça. Para você a letra.

Voltar p/Croniconto


Artesanias-de Verônica Miranda-www.veronicammiranda.com.br

A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE SITIO NÃO ESTÁ PERMITIDA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS