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*** Cronicando***

 

Cordeirinho

Já quase apagando de minha memória aquele rosto, que ainda não se foi por um fato que me marcou. Um rosto sério, angustiado, intransigente. Às vezes achava que era um pouco revoltado e inconformado. Assim era a imagem do fiscal do Banco do interior do Ceará, com quem eu e uma equipe que assessorava pequenos produtores rurais tínhamos que nos relacionar.

Ele era conhecido na região, por ser duro e drástico com os pequenos. Uma vez, nos disseram, ele mergulhou em uma lagoa formada pelas águas de chuva em um baixio, para ver se o produtor plantara realmente o feijão. O que não serviria para mais nada já que o plantio não teria colheita, estava ensopado. Mas ele precisava comprovar se os recursos tinham sido aplicados.

Em uma comunidade em que trabalhamos ele fez algumas. Nos contaram que subia nos telhados para contar os pregos utilizados, descia nos poços artesianos para contar os tijolos e submetia a interrogatórios absurdos os camponeses. Tudo para saber se os materiais utilizados condiziam em suas quantidades exatamente com o que constava na nota fiscal de compra. Se sobrasse um tijolo, ou um prego e não lhe fosse apresentado, já teria alguma coisa interessante para o seu relatório, como desvio de recursos, por exemplo. Esse prego e esse tijolo, todos já sabiam, atrapalhariam projetos inteiros e os culpados seriam os pequenos produtores.

Assim ele procurava exercer seu poder. Prepotente com os pequenos, servil com os poderosos. Irritava-me sobremaneira sua forma arrogante com os pequenos. Mas, descobri que ele não suportava e não sabia reagir a quem falasse mais firme e forte com ele. Tínhamos também que dar demonstração aos produtores de que ele era um servidor público e que seu cargo não lhe dava o direito de ser prepotente. Lições de cidadania que tinham que aprender. Por que sempre abaixar a cabeça diante de prepotências e burocracias desmedidas? Confesso que em alguns momentos cheguei a exagerar. Devo ter lhe dado também alguns gritos, ou falado mais forte do que percebia, pois notava que ele me olhava meio ressabiado.

 Não me incomodava com seu semblante sério e meio carrancudo pra meu lado. O que mais eu poderia esperar de uma pessoa assim? Seu perfil estava traçado. Eu o via como uma pessoa sem retorno, sem conserto. Pensava nas próximas que ele aprontaria e cuidava da retaguarda. Mas o destino me reservava uma surpresa, que ainda mudaria minha forma de pensar.

Por ossos do ofício tínhamos que nos reunir com gerente e fiscal do Banco para delinear para eles os passos a serem dados com novos projetos em comunidades, e saber as possibilidades de financiamento. Estava um supervisor da agência central. O gerente querendo mostrar-lhe o tipo de trabalho que realizava o chamou para a reunião, apresentando-nos. O fiscal de cara amarrada, o gerente elogiava nosso trabalho. Na hora em que me foi dada a palavra, comecei a falar das dificuldades com a burocracia bancária, que não era compatível com a lógica da produção camponesa, e das exigências, às vezes absurdas, que acabavam gerando desencontros. O fiscal me acompanhava com o rabo do olho, parece-me que se controlando.

Continuo com o meu discurso, dizendo que apesar de tudo, sempre era possível negociar e chegarmos a um acordo. Afinal de contas, éramos pessoas civilizadas... Chegando nessa palavra estaquei de repente, quase sufocada. Controlando-me para não rir tive que continuar meu discurso. É que o fiscal, ao meu lado, não gostara do "pessoas civilizadas". Entre dentes e bem baixinho para que só eu o ouvisse, tinha murmurado: Cordeirinho!


Não sei se o fiscal mudou sua forma de atuar. Mas daquele dia em diante, depois da reunião e de rir tudo o que eu tinha direito, passei a crer mais no ser humano, e a acreditar que as pessoas têm jeito . Porque havia descoberto que até alguém tão mal humorado pode ter seu dia de bom humor...E até uma pessoa briguenta pode ter seu dia de cordeirinho.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 08/ Setembro/1999

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Verônica Maria Mapurunga de Miranda


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