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A  Contadora de Estórias

Olhos pequenos, curiosos e brilhantes, sorriso farto e gordo, naquele jeito bonachão. Era assim que se apresentava minha tia contadora de estórias que, vez ou outra na época dos festejos religiosos da cidade, vinha do sítio onde morava e ficava hospedada na casa de meus pais. Eu e minha irmã, crianças, íamos esperá-la na porta da casa com abraços e boas vindas, e anunciando as estórias  que queríamos que contasse.

Ela era uma exímia contadora de estórias, representava para nós um mundo mágico e encantado do qual ela não se escusava, contava-as e repetia-as com prazer, encenando-as e revivendo-as, às vezes recitando versos inteiros das estórias que lia nos "romances". Eram romances de cordéis. Através deles vinham as aventuras infindáveis de Pedro Malasartes, de João de Deus, os clássicos dos contos de fadas, misturados com vaqueiros e fazendas, as Mil e Uma Noites e tantas estórias que muito tempo depois encontrei em livros como Decameron de Boccaccio.

De todas as estórias, uma, entretanto, era mais solicitada: O Menino da Burra. Ainda restam hoje em minha memória os fragmentos de tão importante conto. Pois era assim que ela contava, depois que eu e minha irmã refesteladas em sua volta esperávamos ansiosas sua narrativa.

"Filho de um casal de fidalgos, o protagonista da estória estava completando 18 anos. O jovem ao nascer tinha tido como madrinha Nossa Senhora, que lhe deu de presente uma chave, entregue aos seus pais. A chave era de um dos quartos da casa de seus pais que deveria ficar fechado até que completasse seus 18 anos, e então poderia abri-lo. Ali estaria seu presente."

"Chegado o grande momento, aos 18 anos, foi-lhe entregue a chave. Grande curiosidade do aniversariante e dos pais. Que presente ele ganharia de madrinha tão divina? O rapaz se dirigiu ao quarto e com a chave girou a fechadura. Para surpresa de todos, na cama e no centro do quarto estava deitada uma linda burrinha radiante. Os pais ficaram intrigados e perguntavam: para que todo esse segredo durante esses dezoito anos se agora o que tinha de presente era um animal deitado na cama?"

"Mas o rapaz refletiu e disse: vocês não percebem que minha madrinha quis me mandar uma mensagem? Essa burrinha como presente quer dizer que eu tenho que "ganhar mundo", conhecer o mundo que eu não conheço, e é com ela que eu vou fazer essa aventura."

"Os pais começaram a chorar pensando que perderiam seu filho, e já arrependidos de ter-lhe dado como madrinha Nossa Senhora. Tentaram demovê-lo de tal idéia arriscada. Ele tinha tudo o que precisava na vida, não precisava mais se arriscar assim. Nada conseguiu demover o jovem de tal idéia. Preparou-se, então, pegou sua burrinha e seguiu mundo afora."

"De início começou a perceber que a burrinha não era uma burra comum, ela se comunicava com ele. Não sabia precisar se ela falava realmente ou se a comunicação era pelo pensamento. E tinha outra vantagem, ela lhe indicava os caminhos e lhe aconselhava, era uma guia nessa aventura. De noite eles viajavam, ele cavalgando a burrinha. De dia ela se transformava em pedra."

"Em um determinado ponto da estrada ele foi atraído por um objeto que clareava tudo em volta, com seu brilho. Curioso aproximou-se e verificou que era uma grande pena dourada. Era realmente algo esplendoroso e disse logo: eu vou levar essa pena comigo. A burrinha disse-lhe: você pode levar essa pena, mas vou lhe avisando, que pena pode lhe dar penas. Nosso jovem aventureiro já estava por demais encantado com a pena e resolveu levá-la assim mesmo."

"Em outra paragem, parando para descansar em um bosque, viu um lindo jardim de um palácio, onde uma bela princesa passeava. Aproximou-se. E ao estabelecer contato com ela perceberam que ficaram apaixonados. Saiu de lá e foi até onde estava a burra transformada em pedra. Bateu na pedra e a chamou contando o que lhe havia acontecido. Agora estava irremediavelmente apaixonado e sabia que parte de sua viagem era essa, casar com a princesa e constituir seu reino. Ele levaria de presente aquela pena esplendorosa para o rei  e pediria a mão da princesa em casamento. Com aquele presente ele sabia que causaria boa impressão ao Rei. A burrinha lhe advertiu: vá com calma com essa pena. Já lhe disse que pena pode lhe dar penas."

"O jovem apaixonado resolveu seguir seus impulsos e pediu audiência com o Rei. Lá chegando o presenteou com a maravilhosa pena. O Rei ficou fascinado. E perguntou o que o jovem queria como retribuição de tão magnífico presente. Ele disse que queria casar com a princesa. O Rei disse-lhe que infelizmente essa era a única retribuição que não podia lhe dar, pois o reino estava preso e dependente de outro, e somente aquele que tivesse a coragem de libertar o reino poderia ter a princesa. A situação era difícil e o jovem rapaz foi chorar aos pés da burra. A burrinha lhe lembrou: não lhe disse que a pena lhe daria penas? Depois do pobre rapaz muito sofrer ela falou: está bem, o que está feito, está feito. E passou a dizer para ele o que ele deveria fazer."

Confesso a vocês, caros leitores, que essas tão importantes tarefas sumiram de minha memória. Pergunto-me se não é pelo fato de que cada herói tem as suas próprias tarefas. Mas, de qualquer forma o objetivo é o mesmo - libertar o reino e casar com a princesa. E foi de tarefa em tarefa que nosso jovem herói conseguiu corajosamente devolver a liberdade ao reino e voltou ao Rei para que a promessa fosse cumprida.

"Mas o Rei ainda não parecia convencido e resolveu lhe exigir mais um esforço supremo: trazer para ele o pássaro daquela magnífica pena que ele o tinha presenteado. O jovem voltou desolado para contar à burrinha o acontecido e mais uma vez ela lhe lembrou: não lhe disse que pena lhe trariam penas? O rapaz ficou desesperado, já via seu sonho lhe escorregar pelos dedos diante da impossibilidade de saber pelo menos onde poderia encontrar tão formoso e raro pássaro. Chorou desconsolado por um tempo, e a burra então resolveu lhe ajudar. Está bem, o que está feito, está feito, vou lhe dizer o que você deve fazer para encontrar tal pássaro."

"O jovem fez tal qual lhe ensinou a burrinha. Conseguiu um vinho raro e especial que atraía o pássaro, quebrou o  gargalo  da garrafa e a enterrou  até a altura do mesmo, em um bosque também indicado pela burra. Lá ficou esperando até ele aparecer, atraído que fora pelo tal vinho. Com pouco tempo ele sentiu o bosque se iluminar, e aos poucos foi vendo um majestoso e luminoso pássaro dourado que se dirigia certeiro para a garrafa de vinho aberta. Ao colocar o bico e beber os primeiros goles de vinho, o jovem se aproximou, e tal qual lhe indicara a burrinha, se agarrou às suas asas, sem soltar, nem dar descanso ao pássaro. Foi uma luta grande, do pássaro para se soltar e do jovem para não deixá-lo escapar. Quando o pássaro cansou e viu que o rapaz era corajoso, estava determinado e não ia desistir, se entregou. Disse-lhe tal qual lhe havia segredado a burrinha: você é meu dono, faça de mim o que quiser.  O jovem subiu então em suas asas e se dirigiram ao reino".

"A chegada do pássaro majestoso ao reino causou admiração e espanto a todos e o Rei foi ao encontro do jovem para dizer-lhe de sua admiração e entregar-lhe o reino e a mão da princesa. Retirava-se para entregar o reino a quem era mais merecedor. O jovem casou com a princesa, e a burrinha se revelou pa ra ele, transformando-se em anjo e voando para o céu. Na verdade ela era seu guia e anjo da guarda.  E como terminam os contos de fadas, eles foram felizes para sempre. "

 No dia seguinte minha mãe contava rindo para todos, no café da manhã, que tinha encontrado minha tia falando alto, gesticulando, com os olhos brilhando, contando a tal estória, como se houvesse uma grande platéia, enquanto eu e minha irmã há um bom tempo dormíamos com as cabeças em seu colo. Naquele ponto nada mais importava para aquela grande contadora de estórias, a estória  já ganhara sua própria autonomia.

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Hoje, relembrando essa estória vejo que ela guarda grandes semelhanças com o conto russo Pássaro de Fogo, a estória de Ivan Tsarevich. E talvez meus fragmentos de memória tenham trazido uma estória do Menino da Burra um tanto diferente. Mas cada pessoa com sua estória, e cada estória com seu pássaro.

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Para minha tia contadora de estórias. In Memoriam.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda -14/04/2002

 


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