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Carta já não adianta mais...

Iniciavam-se os anos oitenta desse século que passou. No Ceará, os conflitos de terras ganhavam uma dimensão, até então não percebida pelos noticiários e grande imprensa. Grandes problemas e transformações nas relações de parceria, nas grandes fazendas de gado e plantio de algodão. Parceiros antigos, de 30 a 40 anos em fazendas, eram expulsos com suas famílias. Sem lugar para onde ir, com as condições mínimas de sobrevivência ameaçadas, essas famílias de produtores camponeses resistiam. E continuavam a luta pela sobrevivência e mínima dignidade, através de organizações de base e da procura de entidades e pessoas que os apoiassem.

A Igreja local seguindo a corrente da opção pelos pobres, justiça social e pela teologia da libertação proporcionava, através de vários religiosos e leigos, assessoria e apoio à causa dos camponeses e pequenos produtores em geral. As CEBS(Comunidades Eclesiais de Base) passaram a ser uma realidade importante e inquestionável desde este ponto de vista. Os Encontros  Regionais e Zonais da Igreja onde estariam reunidos todos esses produtores de várias regiões, seus sindicatos e suas CEBS constituíam assim um momento de encontro, de crucial importância para as atividades dos produtores, troca de experiências e de apoio entre todos.

Ali, encontrava-se desde o bispo, o padre, religiosas, leigos e profissionais que participavam e assessoravam nas atividades, irmanados por ideais comuns. Nessa época eu estava participando de uma pesquisa sobre a parceria e conflitos no campo, no Ceará. Através de um advogado que trabalhava com as comunidades e suas causas estabelecemos contatos e pudemos tomar parte desse encontro durante dois dias em Sucatinga, na época distrito de Cascavel-CE. 

Passamos a participar dos grupos de discussão, para depois ir à plenária, onde eram colocados os principais problemas dos camponeses, artesãos, suas comunidades, famílias, sindicatos. Ali era realizado um painel de todas as suas atividades e onde eram também encaminhadas soluções para os problemas discutidos.

 Fomos apresentados a grupos de produtores de uma fazenda no município de Caridade, que estavam ameaçados de expulsão pelos proprietários da fazenda. Mas, não queriam se aproximar de nós. Depois de sermos apresentados devidamente pelos promotores do encontro e caírem as barreiras da desconfiança, eles explicaram e disseram que  pensavam que nós fossemos agentes da polícia. 

O delegado de Canindé havia bloqueado o grupo de produtores na estrada, quando iam  para o encontro, e dito-lhes que tomassem cuidado com o que iam falar, porque lá eles teriam agentes.Um dos camponeses falou: "A gente pensava que vocês eram agentes. Dois homens e uma mulher...Aí eu pensei que a mulher era a isca pra pegar a gente." A isca era eu, que com dois colegas realizava a entrevista, e ficamos sabendo das barbaridades que a polícia andara praticando na fazenda. Até tratores foram utilizados para derrubar as casas, benfeitorias deles construídas há muitos anos.

No encontro, um dos promotores, padre, responsável por paróquia com Cebs, destacava-se: Por sua simplicidade, capacidade de liderança, alegria permanente e relacionamento fácil com todos. Brincalhão, de bem consigo, de bem com todos, com uma visão muito clara e crítica da realidade e da situação que todos vivenciavam. Liderava de certa forma o encontro. 

As atitudes de muitas pessoas reunidas, com pressões cotidianas de toda sorte, vítimas permanentes de injustiças sociais, diferenças, transformavam o encontro na possibilidade de tornar-se o escoadouro para tensões e atitudes beligerantes e extremas. Era necessário estar atento para não perder o equilíbrio e para que o encontro não fosse aproveitado para atitudes outras que não às de crescimento do grupo e de encaminhamento de soluções e seus desdobramentos a posteriori nas comunidades.

Nos intervalos, à boca pequena, alguns assessores e técnicos da agricultura comentavam, que era necessário deixar os produtores extravasar toda a sua raiva, indignação e que os cânticos muitas vezes acalmavam os produtores de suas atitudes extremas que eram necessárias. Entretanto, convivendo no terreno das emoções todo o cuidado era pouco, e o simples e arguto padre já tinha compreendido isso, e aprendido muito na convivência com os próprios produtores e humanidade em geral. Algo mais do que a indignação era necessário quando se queria levar um projeto adiante. Calmo, tranqüilo e brincalhão esperava pelas conclusões dos grupos, dos problemas vistos e das alternativas para eles apontadas.

Depois da apresentação de teatro, manifestações artísticas, moções e denúncias, chegamos finalmente à plenária com as conclusões dos grupos. O que passou a ser um destaque, entretanto, e ponto comum nas várias soluções apontadas era a velha e já batida estória das "cartas às autoridades". Cada grupo que apresentava um problema sempre tinha como uma das soluções: "Escrever uma carta para as autoridades solicitando medidas para resolver tal problema."

 A cada resposta dessa, com uma voz sonora, forte e bem modulada, o padre já citado respondia entoando a conhecida  canção de Roberto Carlos : "Carta já não adianta mais..."

 

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Não podemos perder a capacidade de indignação diante das injustiças de toda ordem, mas sabendo que somente ela jamais será suficiente para empreender e criar soluções. As autoridades somos nós mesmos e as soluções responsabilidade de muitos.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 01/03/2001

 

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