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***Cronicando***

Autonomia

No final da década de 80, realizava com uma equipe, assessoria  a uma associação de pequenos produtores rurais no sertão cearense. O objetivo final do trabalho perseguido por mim e a equipe, e almejado profundamente pelos participantes da associação era a autogestão. Autonomia para  buscar, autonomia para realizar, conhecerem-se e reconhecerem-se participantes como produtores, como cidadãos, como pessoas, com direitos e responsabilidades...Sem paternalismos.

O questionamento profundo das atitudes, das passividades, da  eterna procura  de alguém, instituições ou governo que dirigisse os seus destinos.Compreender os mecanismos da sociedade em que viviam, para onde ia o que produziam, quanto lhes ficava, qual o significado e expressão de todo o seu trabalho?Continuariam sobrevivendo como produtores rurais em uma sociedade e em um sistema que cada vez mais os excluía?

Reuniões e encontros, feitos muitas vezes de sacrifícios: Alguns produtores caminhavam quilômetros, de lugares distantes, por não terem transportes e condições de pagá-los.Outros contribuíam com sua associação de seus próprios e parcos recursos. Vinham de vários lugares, com uma esperança, uma bandeira, um sonho de que poderiam construir algo que lhes colocasse em um novo patamar da existência como produtores e pessoas. Autonomia...Eu quero isso pra viver. 

Bandeira em punho, utopias e o reconhecimento de duras realidades. Muitas ilusões caíam por terra em finais de dias e encontros de muita troca de informações, reflexões, risos e brincadeiras conjuntas. Um pouco de tudo nessa jornada pela autonomia. Mas tudo poderia ser superado em favor do grande projeto conjunto que estava sendo construído.

Uma vez, no final da tarde, olhando a grama do jardim da sede do sindicato, onde nos reuníamos, um dos participantes com olhar nostálgico e distante dissera: Ah, se minhas ovelhinhas estivessem aqui para aproveitar esse capim. As ovelhinhas viviam uma seca, pastando sobre lajedos. Terras pedregosas, áridas, que ele deixara por alguns dias em favor dessa causa. Mais uma longa luta, que poderia minorar essa situação difícil.

Essas observações traziam-nos à dura realidade das pessoas que faziam esses encontros. E cada vez mais percebíamos a necessidade que eles tinham de estruturar sua própria associação, e como sabedores de suas próprias necessidades seria mais fácil encaminhá-las. Mas, antes seria necessário que pudessem gerir sua associação e se reconhecessem como participantes efetivos dela e da sociedade em que viviam, uma vez que todos os intentos já realizados, dependendo de governos e instituições  públicas não haviam funcionado.

Um projeto seria encaminhado para a realização de capacitação e estruturação da associação que necessitava de uma maior capilaridade, para atender os objetivos perseguidos. O bispo da região o encaminharia a entidades não governamentais estrangeiras. Recursos necessários para se dar asas aos trabalhos e projetos.

A diretoria da associação, encaminhou-se conosco, sua equipe de assessoria,  para conversar e negociar as condições de realização do grande projeto, mas seriam eles os interlocutores do bispo e não nós. Momento importante e necessário nessa iniciação à autonomia. Presidente, secretário, tesoureiro, conselho fiscal, representantes da associação com autoridade para definir seus destinos, tinham agora uma grande responsabilidade.

Chegaram a  nos dizer que nós podíamos iniciar a conversa. Dissemos-lhes que afinal de contas  era o momento de colocar em prática o que havíamos conversado e refletido em tantos encontros. Não importava como fosse o encontro com o bispo. O mais importante era que eles tomassem as rédeas de seus destinos, provassem que eram capazes de ser autônomos, sendo os verdadeiros interlocutores naquele encontro.

Reunidos na sala da diocese, esperávamos o bispo. Novo no lugar, o bispo era conhecido somente  de poucas ocasiões, pelos fiéis da Igreja local. A diretoria da associação de produtores toda munida com as informações necessárias - Primeiro ponto a discutir, outro e mais outro, todos traçados e conversados em reunião. Assim deveria ser, bem preparados não teriam o que temer, estavam prontos para exercerem a função que lhes fora confiada.

O bispo se fez anunciar pela secretária. Entrou na sala, todo vestido a rigor, demonstrando exteriormente a majestade do cargo. Deu a mão com o seu brilhante e destacado anel, para que os pequenos produtores o beijassem. O clima de grande descontração, antes da chegada do bispo, transformou-se em uma ritualística de formalidade e submissão dos fiéis produtores e domingueiros participantes da missa semanal. O olhar inquisitivo e majestoso do bispo passeou por todos e falou pausada, mansa e formalmente procurando o interlocutor.

Olhávamos para a diretoria, presidente e secretário sentados à frente, com a responsabilidade de iniciar aquela interlocução. De repente percebemos as expressões faciais que se contraíam e empalideciam. Parecia que lhes voltaram as atitudes submissas e medrosas. E os assuntos tão discutidos nos encontros, e a coragem necessária para a verdadeira autonomia?

Olhamos com um olhar encorajador, que cobrava ao mesmo tempo uma atitude mais firme. O presidente enfim, ergueu-se do seu mutismo, engoliu em seco, e disse que era o presidente da associação. Apresentou apressadamente os demais componentes e representantes da associação e a nós como seus assessores. Percebíamos que as forças quase lhes faltavam.

O bispo esperava, com um olhar ao mesmo tempo paternal e firme, não estava ao que parecia, para concessões.O presidente reunindo forças ia começar a falar da associação, quando de repente vimos um leve sorriso nos seus lábios e um certo brilho no olhar. Teve um insight salvador e disse: Agora para falar sobre a associação, eu apresento aqui o secretário, que pode falar melhor do que eu.

Todos nos olhamos com um sorriso de compreensão e cumplicidade. O secretário já estava mais à vontade e cumpriu bem o seu papel. Não necessitou de nossa colaboração. A pátria (ou a associação) já estava salva. A idéia da autonomia podia continuar.

Depois da reunião com o bispo, e de rirmos todos ao final, pela saída que o presidente da associação havia encontrado ante o terror e medo que o tomara, fiquei a refletir que para conseguir a autonomia não é necessário somente coragem, mas também presença de espírito. Ou dizendo ainda de outra forma, em matéria de autonomia, às vezes, mais vale um secretário na mão do que dois voando.

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Aos pequenos produtores do sertão cearense que lutaram e lutam por seus sonhos de autonomia, lembrando que essas utopias continuam cada vez mais necessárias.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 07/09/2000

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