TRANSITANDO EM NOVOS PARADIGMAS

ARTE E CRIATIVIDADE

TECENDO VIDA       

 

AQUI É UM ESPAÇO PARA REUNIR COMENTÁRIOS E REFLEXÕES QUE VENHO FAZENDO NO MUNDO VIRTUAL SOBRE ESSA QUESTÃO QUE SE INSCREVE NOS NOVOS PARADIGMAS E QUE DIZEM RESPEITO ÀS PRINCIPAIS MUDANÇAS DESTE SÉCULO QUE JÁ FORAM INICIADAS. A ARTE TRAZ A POSSIBILIDADE DA VIA SIMBÓLICA E DO DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE. O SÍMBOLO NOS PERMITE FAZER PONTES NAS NOSSAS PARTES FRAGMENTADAS E ADENTRAR NO AUTOCONHECIMENTO POR SER UMA LINGUAGEM CAPAZ DE COMUNICAÇÃO COM O INCONSCIENTE, QUE TRABALHA NA INTEGRAÇÃO DOS OPOSTOS  E POR ISSO TEM QUALIDADES TRANSCENDENTES. APRENDER A SIMBOLIZAR É UMA DAS TAREFAS DOS SERES HUMANOS NESTE SÉCULO, NECESSÁRIA PARA A INTEGRAÇÃO DO SER HUMANO.  A ARTE AJUDA A DESENVOLVER A CRIATIVIDADE E EM DETERMINADO NÍVEL AS CAPACIDADES DE CO-CRIAÇÃO, INDO ALÉM DA CRIAÇÃO SUBJETIVA,  SE RELIGANDO A PSIQUE OBJETIVA, AO SAGRADO E INSPIRANDO CAMINHOS. SÃO ARTIGOS DE OUTRAS SEÇÕES DO SITE, BEM COMO DE COMENTÁRIOS E REFLEXÕES REALIZADOS POR MIM NO ESPAÇO VIRTUAL E AQUI DESENVOLVIDOS SOBRE O TEMA.  VERONICA MARIA MAPURUNGA DE MIRANDA -16.06.2019

HUMORVIVENDO A PARTIR DA ALMA, DO COTIDIANO E CULTURA

 AQUI E ALI, FABULANDO

HISTÓRIA DE MAR (Uma fábula verdadeira)

O mar é um símbolo importante do inconsciente coletivo, ou da consciência em uma visão mais oriental. E como tal traz "os seus segredos tão sagrados" à memória de nossa alma. Uma memória mais profunda que só o coração pode testemunhar enquanto resgata partes da alma individual ou coletiva, que ficou esquecida na superficialidade do tempo moderno que faz ressoar a tal frase: "No tempo moderno tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado". E o coração, ou parte dele, às vezes nos abandona para mergulhar nas águas profundas e recolher tesouros que são partes da vida. A natureza é sagrada e sua memória nos conclama a ir sempre um pouco além, onde a realidade parece fábula e as aventuras um sonho estranho que alguém teve.

Falo de uma época já ida, nos meus verdes anos da adolescência. Fase crítica onde em geral necessitamos de ritos de passagem, mas a cultura moderna não nos favorece nisso. Fui convidada, então, pela madre superiora do colégio em que estudava e que era vizinha de minha família, uma vizinhança antiga e bem freqüentada. Tendo nascido no litoral de Paracuru, a madre superiora não suportava passar todo o ano sem ver  mar. E assim formamos um grupo de férias, em que ia ela e outra freira do colégio, sua sobrinha pré-adolescente e uma amiga dela da Serra de Guaramiranga, com o sobrenome de Luz, que sempre a acompanhava nessas viagens e que nessa viagem era a encarregada das compras, das comidas e além disso fazia o papel de preceptora das adolescentes. A praia escolhida era Bitupitá, também conhecida como Almas, um povoado de famílias de pescadores, do município de Camocim. Fiquei contente pelo convite, porque seria umas férias de aventura e onde poderia conhecer um tipo de vida diferente da serra, onde viviam pessoas em constante relação com o mar.

A aventura começou na viagem, feita em um jeep sobrecarregado de mantimentos e nós. Eu e a companhia pré-adolescente pesávamos bem pouco o que facilitava a carga do veículo. Por estradas carroçáveis, as existentes na época, enfrentamos vários atoleiros, mas enfim chegamos em Bitupitá, onde o responsável pela casa onde ficaríamos já nos esperava, com alegria. Nosso anfitrião era o diácono responsável pela pequena Igreja da comunidade,  a casa disponível era da paróquia e recebia padres, freiras e pessoas enviadas por outras paróquias. Logo ao chegar percebemos que a maioria das casas eram pequenas casas de pescadores e que a vida das pessoas giravam em torno da pesca. Foi possível perceber também a beleza do lugar. O povoado era todo cercado por belas dunas que nos dias seguintes tivemos oportunidade de escalá-las em passeios pela praia. O mar era maravilhoso, cheio de piscinas onde as ondas quebravam suavemente e desde cedo da manhã podíamos brincar à vontade e sem medo em suas águas, por onde passavam muitas gaivotas. Ao entardecer fazíamos longos passeios pela praia, com o sol ameno e se pondo. Ali, nessa hora, o mar era belo e poético e nos convidava à reflexão. E em determinadas horas presenciávamos as chegadas dos barcos, com muitas pessoas do povoado esperando-os festivamente, como um grande acontecimento. Comecei a conhecer os peixes que chegavam na Serra toda semana para nossas refeições, mas não adivinhava seus tamanhos. O camurupim era do tamanho de um homem e era pescado com arpão, como se pescavam as baleias. Encontrávamos aqui e ali na praia as aruanãs, grandes tartarugas do mar. Os sítios de coqueiros encima das dunas, que se moviam muito rapidamente, ficavam enterrados na areia, onde ficávamos sentados e com uma mão tirávamos o coco para beber água. Parecia tudo tão simples e tão fácil. Aprendi a comer caranguejo aí, que junto com peixes e camarões fazia parte do nosso menu diário e que na serra tínhamos alguma restrição para comer caranguejo e camarões. Meu pai dizia que eram muito reimosos para a saúde. Em algum dia da semana comíamos carne de criação ou porco, de acordo com o que havia no mercado do lugar, assim era possível variar o menu diário.

O sol a partir das 9 horas da manhã era forte e a madre superiora recomendava que não ficássemos na praia além dessa hora, mas a adolescente queria chegar na serra bronzeada e comecei a ir na praia um pouco mais tarde que de costume. Os pescadores que faziam redes de pesca na praia gritaram de longe: Serrana, cuidado com esse sol! Você é muito branquinha, pode queimar sua pele demais. Cheguei em casa e disse para nossa mordoma e preceptora com sobrenome de Luz e ela disse: Tinha pescadores na praia? Amanhã você não vai sozinha. Vou com você. E foi. E logo comecei a parecer uma brasa, toda vermelha. E tive novamente que mudar meus horários e me encher de cremes para curar assaduras. Mas tudo isso não me fez desistir de nada. Até aí pensei que essas eram as aventuras possíveis. As férias estavam sendo maravilhosas e não esperava mais aventuras que aquelas. Mas nosso anfitrião chegou um dia alegremente e disse: Alguém aqui gostaria de viajar de barco à vela? E a resposta de todos foi quase em uníssono:SIM. E ele explicou que tratava-se na verdade de uma viagem a uma localidade próxima, chamada Cajueiro, mas que já era do Estado do Piauí. Era mais ou menos uma hora de viagem. E o objetivo principal era ele visitar uma comadre sua que estava doente e que ele não via há algum tempo. Ficamos todas eufóricas à espera de tal viagem. E no dia acertado saímos todos muito cedo da manhã para a praia. Lá, nosso anfitrião nos esperava com suas duas filhas adolescentes e dois pescadores experientes. O barco totalmente à vela foi içado com todos nós dentro, um total de umas 10 pessoas. Todos muito alegres, com o vento nos levando e se afastando para alto mar, comendo coco da praia e conversando. Ficamos sabendo dos pescadores algumas informações da navegação e também de suas vidas. Um deles não gostava de comer peixe. Nunca havia comido peixe desde que nasceu. E nós quase sem acreditar: Como alguém que era pescador, de família de pescadores não comia peixe? Refletindo depois, pensei que ele pertencia tanto àquele mundo marítimo, que se sentia também peixe e por isso não conseguia comê-los.

À medida que nos afastávamos da costa e entrávamos em alto-mar nosso anfitrião dizia: Já estamos entrando nas águas do Piauí. O mar estava maravilhoso e o vento nos ajudava e logo com uma hora ou mais de tempo navegando começamos a avistar a localidade de Cajueiro. Aquela viagem era uma aventura alegre com muitas histórias contadas pelos pescadores e anfitrião. Enfim, chegamos na praia de cajueiro e logo que aportamos nosso anfitrião disse: Vamos logo na casa de minha comadre, que ela deve estar nos esperando. Depois vocês aproveitam a praia. E o seguimos. De repente paramos em um quadrado que parecia uma praça, com muitos flaboyants altos e frondosos plantados, cheios de flores e buganvílias em cachos. Olhei do outro lado e vi um casario com casas de uma arquitetura muito conhecida. Olhei novamente a praça e de repente comecei a ficar mareada, parecia que estava em outro tempo, como se tivesse havido um corte no tempo e me transportasse. Aquilo tudo ali parecia Viçosa de minha tenra infância. A praça que já havia mudado em Viçosa e aquela ali que parecia uma cópia, as casas perfiladas eram iguais. Tive a sensação que tinham preservado aquela imagem de minha terra natal. Como poderia ser? Além disso, ali era Piauí. Fui saindo daquele transe com o chamado de nosso anfitrião para irmos à casa de sua comadre.

Lá chegando nos atendeu seu marido e pediu desculpas porque sua esposa tinha ido à cidade de Parnaíba fazer uma consulta médica que estava marcada. Tinha recebido o aviso de que chegaríamos para uma visita, mas já estava com a consulta marcada e não foi possível nos esperar. Mas estava ele e sua filha e estávamos em casa. Nos convidou para entrar. E ao entrar fui observando o interior da casa com o piso feito dos mesmos tijolos feitos na localidade Tope de Viçosa, que até então pensava que era o único lugar que eram feitos e que já haviam bem poucos nas casas da cidade de Viçosa. Só algumas casas mais antigas o mantinham. E tive mais uma vez a sensação de que ali era Viçosa um pouco mais antiga, em que foram conservados aquilo que conheci em minha tenra infância. Um deja vu. Muito tempo depois, já morando em Fortaleza conheci alguém que havia nascido em Bitupitá e ele me contou uma passagem de vida idêntica, quando chegou na casa em que nasceu e que esteve por muito tempo fechada. Ao abrir a porta para entrar veio um aroma que estava ali retido e que o inundou. E que era um aroma antigo, que só tinha sentido em sua infância e de repente ele também se viu transportado à sua infância, com as emoções dessa época .

De volta das recordações e depois de conversarmos um pouco sobre a saúde da comadre de nosso anfitrião, que o preocupava, chegou sua filha e disse: Venham comer uma merenda, pois fizeram uma longa viagem de barco e devem estar com fome. E ali, bem convidados, fomos a merendar e quando nos aproximávamos da mesa da sala de jantar novamente fui inundada por um cheiro muito conhecido. Parecia-me que andava pelo corredor da casa de meus avós paternos no sítio Buíra, em direção à grande mesa da sala de jantar, com cheiro de erva doce e cravo dos esquecidos e bulinhos de goma, feitos com mel de rapadura, para depois chegar a uma mesa farta com todos os quitutes para um bom café e merenda, logo que chegávamos ao sítio. Novamente a sensação de deja vu. E ali estavam. Eram tapiocão e tapiocas recheadas com coco e no leite de coco em palhas de bananeira; pamonhas, bolo de milho e cuscuz; manzape, esquecidos, bulinhos, roscas e petas, café, leite e suco de frutas, entre eles caju. E outros quitutes que minha memória já não alcança, mas todos eles feitos também por meus avós, aprendidos por minha mãe, na serra, e que povoaram minha infância. E ali era Piauí. Mas as tradições culinárias eram as mesmas e as formas de vida, suas moradias e lugar pareciam um retrato antigo de lugares de minha infância. E enquanto lembro disso, lembro também das gamelas de madeira que minha mãe usava como utensílio de cozinha que vinham do Piauí, assim como as peneiras, o fruto do buriti para fazer o doce e cambica e o mel de abelhas que meu pai dizia orgulhosamente que era da "floresta central do Piauí", para atestar sua boa qualidade. Tudo fruto de uma relação muito próxima que chama a alma a algo mais profundo, como o leito de um rio por onde corre uma cultura, que se desenvolveu sem tantas divisões e subdivisões administrativas.

E depois da merenda e de circular pela vila pequena e bela, conhecendo os seus recantos, nosso anfitrião disse: É melhor voltarmos. Os pescadores dizem que vamos pegar a maré cheia e os ventos podem estar fortes. Quanto mais cedo chegarmos no Bitupitá melhor.  Nos despedimos agradecendo a boa acolhida e entramos no barco à vela onde os pescadores já nos esperavam. Desde o início, apesar de ser uma marinheira de primeira viagem em barco à vela, tinha confiança nos pescadores que eram bastante experientes nesse tipo de embarcação. Mas quando começamos a nos aproximar do alto-mar as ondas pareciam furiosas. E os pescadores advertiram: O mar está muito forte, muito encrespado. E vi uma expressão de preocupação deles. De repente ouvimos um barulho, um rangido. O mastro havia quebrado. E eles disseram: Calma, nós vamos consertar! Enquanto um deles subia no mastro para consertar, o outro colocava a vela de um lado para outro, para que o barco se mantivesse, sem virar. E enquanto fazia isso o barco dançava sobre as ondas e as filhas adolescentes de nosso anfitrião começaram a gritar. E o pai delas disse: Parem com isso! Vocês não têm vergonha de ver a serrana, que não tem nenhum costume de andar em barco à vela está quieta, sem fazer escândalo. E vocês gritando! Depois que tudo passou e refletindo, pensei que elas gritavam porque tinham noção real do perigo que corríamos e eu não.

Quando os pescadores viram que a situação estava complicada disseram: Olhem, nós vamos nos aproximar dos currais (onde pescam os peixes com tarrafas) que estão próximos daqui, amarramos o barco nas estacas do curral para ter mais segurança e podermos consertar o mastro. E depois propomos que voltemos para Bitupitá através do rio (rio Timonha que passava pelo mar e estávamos próximo dele). Vamos voltar pelo rio bordejando (em zig-zag) para aproveitar o vento. Mesmo que seja mais lento é mais seguro. E assim foi. Ficamos um tempinho com o barco amarrado nos currais, enquanto os dois consertavam o mastro e depois rumamos para o rio Timonha. Era muito lento e estávamos cansados e estressados pela fúria do mar e os eventos não esperados. Mas pudemos apreciar o rio e os manguezais, com os caranguejos em época de sair para passear. Muito caranguejo saindo de suas tocas nas margens do rio. E quando começamos a avistar as casas da vila de Bitupitá ficamos felizes de estar chegando em casa. O sol já estava se aquietando no poente enquanto saltávamos do barco para ir para casa, nos despedindo de todos agradecidos por um dia de aventura no mar, em que a alma esteve presente, nos levando para outros tempos de forma profunda para que eu tivesse oportunidade de realizar uma passagem e de descobrir em um deja vu que navegamos no mesmo mar e leito de uma mesma cultura, que aqui e ali mostra os seus segredos, na relação com a sacralidade da natureza, deixando evidente os seus tesouros e nossas raízes.

Muito tempo depois, assisti uma entrevista de Niède Guidon falando do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato em Piauí, onde depois foi criado o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Museu do Homem Americano. De repente, senti uma admiração profunda por aquela mulher filha da miscigenação entre um francês e uma mulher brasileira e segundo suas entrevistas indígena, que se formou arqueóloga e completou seus estudos na França. Mesmo tendo nascido em Jaú, são Paulo tornou-se praticamente piauiense e descortinou com sua equipe de trabalho todo um passado de nossa ancestralidade em milhares e milhares de anos(em torno de 100 mil anos) demonstrando que nossos ancestrais autóctones já estavam aqui em toda essa região que deve abranger também parte do Ceará, além de Piauí, antes que qualquer corrente migratória viesse pelo estreito de Bhering para as Américas. Parece que temos um passado muito comum e raízes muito antigas. E essa ancestralidade comum nos conclama a estar em cooperação e não em guerra, em conflito, em litígios. A colonização das áreas que hoje conformam nossas áreas limítrofes de Ceará e Piauí dessacralizaram nossas raízes naturais, trouxeram guerras entre povos e nações pacíficas, para fazer a acumulação capitalista européia e as disputas de poder entre países europeus e interesses que não correspondiam ao interesses das culturas autóctones. As neocolonizações dos países centrais do capitalismo sobre paises como o Brasil continuam e o que nos resta perguntar é se a natureza e sua sacralidade, se a cultura profunda com raízes comuns, que se estabeleceu em muitas formas de relações entre as populações que hoje são o Estado do Piauí e Ceará e suas áreas limítrofes, devem ceder lugar ao litígio e ao conflito que não são os interesses da população?

Desse leito de cultura profunda e sacralidade ancestral que é parte dos dois estados (Piauí e Ceará) é que podemos construir relações sólidas em todas as áreas, com vigor econômico, realizando atividades que se encontram na cooperação e no respeito por tudo aquilo que somos e que já construímos. É sobre o florescimento dessa cultura profunda e ancestral em muitas atividades culturais e turísticas que reside nossa força. Não nos extraviemos disso!

Verônica Maria Mapurunga de Miranda-24.08.2023


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