PRINCIPAL

CRONICONTO

GALERIA

PEPEGRILLO

MOMENTOS

MURAL

CULTURA


***Cronicando***


O Abismo da Ilusão

“Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via.

Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? “

(Mito da Caverna - Extraído de "A República" de Platão . 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291)

 

Foi pensando sobre o Mito da Caverna e as situações em  que nós seres humanos somos postos à prova nos momentos de lusco-fusco da vida, que me veio à lembrança um já distante dia de minha adolescência. Estava com um professor de várias gerações de conterrâneos meus, comensal assíduo da casa de meus pais. Ali havia lugar para discutir muitos assuntos, literatura, gramática, novos significados e significantes. Signos de uma língua que Rui Barbosa complicava com vinte  ou mais sinônimos para uma palavra. Ele perguntava aquela difícil e eu e minha irmã respondíamos: “Eu sei, mas não sei explicar”. Replicava: “Quem sabe e não sabe explicar é porque não sabe. Vão buscar o “pai dos burros”. E íamos providenciar o dicionário.

Mas naquele dia não era dia para gramática, Rui Barbosa ou Olavo Bilac, o assunto era o de uma futura crônica que ele faria, mas tinha que trabalhar melhor o tema. Baseado em uma estória verídica da nossa pequena cidade, o tema lhe suscitava interrogações filosóficas, situação que qualquer um poderia ter diante da vida e da iminência da morte. Seu rosto se contraía preparando-se para contar o fato. Meus curiosos olhos adolescentes acompanhavam o mínimo movimento e tudo foi registrado, sem saber que seria contado agora.

Ora, naquela pequena cidade onde as luzes do velho motor à caldeira só ficavam acesas até às 9 horas da noite, as pessoas saíam das praças e conversas nas calçadas para se recolherem logo que sinalizava o "apagão".  Mas nem sempre havia tempo para quem morava nos arredores da cidade como o  José da estória. Tinha que passar pelo antigo Cemitério dos Macaxeiras e enfrentar os fantasmas que por aí tinham lugar na imaginação da população. Área de vegetação densa e terrenos em desníveis, com abismos, era o caminho para sua casinha de palha sobre o morro. Sempre levava a lamparina, pois com o sinal do "apagão" não havia tempo de aproveitar a luz dos poucos postes de iluminação dessa área. Dia nevoento, nem estrelas havia. Soprava um ventinho úmido e quando ele acendeu a lamparina veio uma lufada e apagou.Procurou a caixa de fósforos no bolso. Vazia. Agora tinha que ir pela intuição na noite de breu.

  Topava aqui e se endireitava. Seguia caminho. Em uma hora o toco era grande e a topada fez-lhe sair resvalando e escorregando por barrancos até perceber que estava caindo num precipício. Teve presença de espírito para se agarrar em um galho, e aí ficou suspenso enquanto tentava colocar as idéias no lugar.

   Nenhuma viva alma no lugar, só os fantasmas dos Macaxeiras rondavam no cemitério. Ninguém para pedir ajuda, o olho não divisava um palmo adiante do nariz. Pensou: “E agora, José? Estou sozinho, na escuridão, e posso cair nesse abismo.” Imaginava as pedras pontudas lá embaixo, que deixariam seu corpo em fragmentos com a queda. A neblina fria não ajudava, passavam-lhe calafrios de morte. A coruja piava agourenta... A rasga-mortalha.

  Nesse ponto da estória o rosto do professor se contraía e dizia: “Fico aqui imaginando o que esse homem poderia pensar nesse momento, diante da iminência da morte. Será que ele repassava toda sua vida, querendo saber se tinha valido a pena? O que alguém pensa quando está diante da morte em circunstâncias tão estranhas e especiais?

  Eu hoje perguntaria: Não teria sido este o momento para confrontar os seus auto-enganos? Vejo-o pensando e avaliando todos os momentos que lhe escaparam pelos dedos, pelo medo, pela teimosia, pela obstinação em pensar que os outros conduziam seus passos,  por não ver o que a escuridão da noite e da morte iminente lhe anunciavam sobre a vida. Quantas veredas circulares a caminho de casa caminhou, para encontrar no mesmo ponto os velhos fantasmas do cemitério, que agora eram testemunhas do arrependimento? O que lhe sobrara da vida? O mínimo para uma reflexão sobrevivente antes de ser tragado pelo abismo da morte. E agora sabia, tudo poderia ser mais cheio, mais completo, mais simples e mais criativo. Elementar meu caro Watson, diria Sherlock Holmes.

  As idas e vindas no pensamento da agonia e desespero da morte solitária passavam como séculos, desdobrando-se e purgando os sentimentos já quase puros, numa entrega silenciosa e sem eco, porque sem fala. Os braços já dormentes, qual aço,  grudavam no galho respaldados pelo instinto de sobrevivência. Subiu e desceu na imaginação como nos contos de fadas, ficando do tamanho de um prato, de um pires e de um fundo de agulha, suspenso na via-láctea, para voltar depois à atordoante realidade, quiçá sem futuro.

  E então, as primeiras raias do dia se anunciaram, uma barra de tênue luz, um lusco-fusco,  com cantos de passarinhos e tropel de cavalos na estradinha ao longe. Já sem voz e enregelado teve coragem de olhar para baixo, para o abismo que lhe esperava. O chão firme, entretanto, estava a meio metro de seus pés. Estava sobre um barranco. O abismo nunca existira, a névoa da ilusão e a escuridão da noite o haviam suposto. Ouso perguntar se ele não se fez por uma necessidade.

  Enquanto pisava em chão firme, os primeiros raios dourados de sol o iluminavam. Acabava de nascer um novo homem.

 -------------------------------------------------------

Não sei  se  o professor algum dia escreveu sua crônica como queria e o que lhe resultou de tal escrito, mas do que me foi dado a perceber concluí que abismos são ilusões por nós fabricadas quando precisamos morrer para nos tornarmos mais vivos e ver a realidade com menos enganos. 

Ao professor em memória dos velhos tempos!  

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 02/04/2002

 


Aqui você me encontrará sempre com o cotidiano, com o prosaico, com o divertidamente humano, com o essencial que está presente em nossos encontros e desencontros do dia-a-dia. Aqui você me encontrará cronicando.                                  

Verônica Maria Mapurunga de Miranda


Midi: Luzes da Ribalta -Charles Chaplin -1952


Voltar p/Croniconto


Artesanias-de Verônica Miranda-www.veronicammiranda.com.br

A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE SITIO NÃO ESTÁ PERMITIDA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS