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Cronicando

Minha Vida é o Lixo ou  Vida é a Arte de Viver

No final da década de 70 do século passado participava de um projeto de educação popular (método Paulo Freire) na periferia de Fortaleza-Ce.

 A população que aí morava era oriunda dos desfavelamentos porque passou a cidade de Fortaleza-Ce no período citado. As condições de vida aí eram extremamente precárias: moradia, transporte, emprego e saneamento básico. Parte da população sem condições de sobrevivência trabalhava na "rampa do lixo". Catavam objetos do lixo para reciclagem e vendiam. Desenvolveram um tipo de atividade, instrumentos próprios para o trabalho, linguagem de acordo, com uma nomenclatura especial. E sobre essa atividade viviam, criavam e recriavam a sobrevivência. 

Ali conheci uma mulher, participante do projeto, e convivi com ela uma boa quantidade de anos à medida que esse projeto se desdobrou em outros trabalhos.Trabalhando com o lixo e com muito esforço resolveu que queria participar dos grupos de discussão e aprender a ler e escrever.Quando ela aprendeu a ler e escrever o suficiente para fazer uma redação ela escreveu: o lixo é minha vida.E depois agradecia a Deus por essa atividade que lhe permitia sobreviver.

 Fiquei marcada pra sempre por aquela mulher. Pela capacidade incrível que ela tinha  de transformar o que considerávamos de pior em nosso meio em algo produtivo. Pela capacidade que ela tinha de criar em sua vida. Ela não tinha nada, só restos... que aproveitava e era grata  por essa oportunidade.

A partir daí, como ativa participante dos grupos de trabalho e discussão, não perdeu nenhuma oportunidade. Logo, logo, e como parte das atividades da comunidade, ofereceu sua pequena sala para a bodega comunitária, e como participante de um grupo sobre a sexualidade da mulher e anticoncepção iniciou a formação de uma creche comunitária.

A creche comunitária- sua esperança de alimentação, educação e desenvolvimento de seus filhos, sua garantia de um trabalho que a realizava, que a fazia crescer- se concretizou e ela se tornou uma mãe-crecheira.

Trabalhava na cozinha, responsável pela alimentação nutria as crianças e o trabalho. Sempre com opiniões equilibradas, assídua participante de todas as atividades e de bem com todas as colegas.Sua vida ganhara um novo rumo.Abria os braços para proteger aquela nova oportunidade e quase invisível se colocava por trás de tudo, cuidando para que nada de mal atrapalhasse e mudasse os rumos benfazejos daqueles ventos. Defendia sua creche e suas conquistas com unhas e dentes.

Aos poucos, via sua filha pequena crescendo com saúde, alegre e bem desenvolvida, seus dois outros filhos integrados no trabalho da creche aprendendo alguns ofícios e já ganhando para ajudar no sustento da casa. O companheirismo das colegas, um ambiente de trabalho sadio, a esperança de ter encontrado finalmente seu lugar, seu trabalho e alguma estabilidade e equilíbrio.Um problema de que ela pouco falava, entretanto, era o marido. Alcoólatra, praticamente entregue à bebida, não conseguia trabalhar.

Um dia em que eu estava participando com as mães-crecheiras de um mutirão no plantio de hortas para a creche, ela se achegou aos poucos como se quisesse conversar. Necessidade de olhar para trás, fazer um reconto de sua vida. Parece-me que tinha chegado a um ponto em que podia fazer isso, olhar as dores passadas sem temor, colher os louros de suas conquistas.Começou a me relatar sua história desde o tempo em que morava com sua mãe na favela que tivera que deixar.

Viu de longe aquele homem bonito. Seus olhos brilhavam enquanto o descrevia. Era alto, branco, de olhos azuis, "parecia um príncipe". Era "galego", vendedor ambulante de porta em porta. Quando ele a viu puxou conversa, deu a entender que gostara dela. Ela nem acreditava.Um homem daqueles "tão bem parecido", tão bonito. Achava demais pra ela, nunca imaginou que poderia ter um namorado assim. Começou a viver um conto de fadas.

Mas depois de algum tempo descobriu seu problema: bebia muito. "Quem podia imaginar, dizia ela, tão bem parecido"! Já estava tão apaixonada e, então, resolveram se juntar. E aí sua vida começou a piorar. Ele bebia cada vez mais, não conseguia mais trabalhar e ela teve que prover o sustento da casa fosse como fosse. Daí chegou ao lixo, para alguns o fundo do poço, para ela a única forma de sobrevivência que encontrou. O marido tornou-se sua cruz, que carregava sem reclamar e dizia: ele não tem mais ninguém, eu não vou abandoná-lo. É o pai de meus filhos.

Depois apareceu aquela oportunidade- a creche comunitária - a melhor coisa que acontecera em sua vida. Com muita luta chegaram a esse ponto, e relembrava todas as reuniões, todas as expectativas, todos os passos dados. Agora estava mais tranqüila, a  vida mais ajustada, a creche comunitária cada vez melhor, sua família arrimada. Dava suspiros quando disse por fim: "É minha amiga, minha vida dá uma novela."

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Concordo que a arte imita a vida, mas estórias como esta mostram que vida é  a própria arte de viver.

 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda - 26/ 10/2001


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