Ao Pife

Nos 95 anos de meu pai Alfredo Miranda, havia uma reserva antiga de cachaça de 1955, que em princípio deveria ser dividida entre os filhos,  mas se necessitou realizar um trabalho comemorativo em função das necessidades da casa de meus pais. Convidada a dar minha contribuição pensei que minha contribuição poderia ser com a escultura Ao Pife. Escultura comemorativa que representa na garrafa as duas artes de Alfredo Miranda: seu trabalho com a aguardente de cana durante toda a sua vida  que é também  matéria -prima dos licores, a música do pífano e a confecção de seu próprio instrumento musical como arte reconhecida por ele aos oitenta anos, quando ganhou a flauta transversal que sempre almejara. Ganhou a flauta dos filhos e então reconheceu que sua verdadeira arte era o Pife.

A arte musical de Alfredo Miranda, seu trabalho com a aguardente de cana e a arte culinária de Terezinha tornaram a Casa dos Licores ao longo do tempo e de suas atividades um lugar de referência na tradição e cultura viçosense e da Serra da Ibiapaba. Neste ano de 2011, contudo, Alfredo Miranda iniciou o difícil ciclo de despedida e alheamento de todas as atividades que constituíram sua vida e de Terezinha na Casa dos Licores. Com a saúde fragilizada ainda teve condições de na fogueira de Santo Antônio em 12 de junho, nas festas juninas, estar com alguns filhos, Terezinha, acompanhantes e vizinhos saboreando pipoca e bolos em torno da fogueira, na calçada de sua antiga casa, agora  Casa dos Licores.  E antes de sua saúde piorar  neste mês de julho ele tocou, para alguns filhos presentes e um grupo da cidade de Crateús, trechos de Asa Branca, e do xote que compôs para sua esposa Terezinha. A memória musical que não lhe abandonou quando a outra memória falhou. Em Janeiro, entrando nos 95 anos e já sem me reconhecer, mas ainda conversando, perguntei a ele como se sentia e ele me respondeu: Na idade em que estou é assim mesmo, a gente vai  e vai se entregando a Deus. E é assim, segundo sua própria concepção, que ele se encontra.

As pessoas que visitam a Casa dos Licores querem vê-lo e ouvi-lo tocar, mas nem sempre é possível. Na cidade de Viçosa todos sabendo de sua saúde fragilizada querem saber como ele está passando e uma vizinha chegou a comentar : seu Alfredo e Da. Terezinha para mim são como uns deuses. Elevados como ícones da cultura local eles não são, contudo, deuses, nem anjos, apesar de muitos usarem essas metáforas, mas seres humanos com um lugar e representação numa cidade que era uma antiga comunidade, com valores e tradições que já estão desaparecendo. Cultivando uma arte pouco valorizada e pouco reconhecida e se projetando enquanto um representante dessa cultura e como um tocador do Pife, mestre do Pife, Alfredo Miranda valorizou a todos os tocadores e mestres de pífanos da região.

Fazendo as pequenas esculturas, que são cinqüenta tocadores de pife nas cinqüenta garrafas de cachaça decoradas, percebi que todos eram bem diferentes. Tentando estabelecer um padrão não o consegui completamente: uns saíram gordos e baixos, outros esbeltos e mais altos, rostos bem diferentes e com posturas distintas. Comecei a me impressionar com a resistência de minhas mãos, e logo, quando terminei as primeiras trintas esculturas e fotografei-as para a divulgação percebi que elas formavam bandas, orquestras, ternos de pífanos apresentando-se. Veio-me a imaginação que todos esses tocadores de pífanos não eram réplicas de Alfredo Miranda, mas muitos outros tocadores e mestres de pífano que apareciam para homenageá-lo, em plena temporada do Festival de Música da Ibiapaba que acontece em Viçosa do Ceará. Alguém poderia dizer que é simplesmente imaginação. Quem sabe? Algumas fotos abaixo, dos tocadores e mestres do pífano que fazem parte desse ato comemorativo e homenagem ao mestre do Pife - Alfredo Miranda.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda. 25 de julho de 2011.